Vanessa Brandão

Cor de terra

Quando silenciei meus medos

Deixei minha cor dar seu recado

Delicada

Me disse que eu era mais do que parda

E que poderia me camuflar por entre as árvores

E ser rio

Ou capim

Ou palha

Cor de encantamento

Cor de poesia orgânica

Cor de mãe d’água

Cachoeira

Mãe do Mato

Cor de índia

Cor de genipapo

Cor de terra

Areia

Poeira

A mulher cor de terra

A mulher cor de pôr do sol

Uma muiteza só

FOTO DE BUMBUM E SUAS PEQUENAS PAIXÕES IMPORTAM

Lódz, Polônia

9 de fevereiro de 2020. Fim do inverno

Eu curto quem posta foto mostrando o bumbum na rede social em plena quarta-feira, no horário comercial. É um ato de transgressão, um rasgo no chato conservadorismo, um grito de liberdade. Gosto inclusive quando o bumbum é fora de forma, com celulites e estrias. Gosto de bumbum dentro das grades do padrão publicitário, pela beleza pura e simples, mas gosto mais daquele que andava escondido por estar justamente fora dos padrões inoportunos. Esses corpos que se libertam e que se curtem do jeito que são, passam a ser uma homenagem ao que é comum e normal. Acostumam nossos olhos a outro tipo de beleza.

A mulher que postou a foto, por um momento não se importou com o homem tarado que iria se masturbar vendo a imagem dela (a gente passa a vida toda com medo de psicopatas tarados), não se importou com as amigas do trabalho que poderiam rir e debochar, nem com o print que poderiam tirar para falar mal ou bem. Ela simplesmente se achou bonita e quis compartilhar, quis dizer que está com a autoestima lá no céu e é muito feliz assim. E te planta a pergunta: por que você também não está feliz do jeito que você é? Quem disse que não pode?

Gosto das garotas doidas que vivem seus prazeres secretos, e das mães que insistem em doar seu tempo para um pequeno passatempo, mesmo com a casa caindo, com as roupas entulhadas, com o filho enchendo o saco. Gosto porque nos faz bem e, consequentemente, faz bem ao mundo. Gosto ainda porque nós, mulheres, passamos a vida confundindo o nós, nosso eu, nossos impulsos e ideias criativas que vem junto e colorindo a alma, com o que é determinado pelos outros, as regras morais e sociais, o machismo embutido em todas as limitações, todos os “mas você é mulher”.

O normal é doar-se para atender o próximo. A mãe, os irmãos, os filhos, as amigas, o trabalho, a casa, o marido e as nossas pequenas e grandes coisas são sempre minimizadas, colocadas em um cantinho para quando sobrar tempo, e esse tempo dificilmente sobra, mesmo para aquelas que trabalham apenas em casa, afinal, trabalho de casa nunca acaba e é a melhor maneira de paralisar uma mulher (tentando lembrar quem disse essa frase).

A mulher sarada, que não fica um dia sem ir à academia, que se organiza para comer direitinho, mata todo dia alguns leões para poder priorizar-se e, com certeza, já foi chamada de egoísta e foi malhar puta da vida por isso. A que não tem esse foco, pois não aguenta conciliar filhos, casa, marido e ainda uma atividade física, também é cobrada, chamada muito provavelmente de desleixada e outros adjetivos nada corteses.

Qualquer lazer, qualquer hobbie feminino, tudo que queiramos priorizar além daquilo que a sociedade “manda” é taxado de frívolo, perda de tempo, vira piada. Eles dizem “coisa de mulherzinha”. Observe quanto de pejorativo tem nisso. Muitas cansam, deixam de lado as pequenas paixões, seguem o bonde da vida conforme manda o figurino social e lá na frente adoecem, não sabendo o porquê. Adoecemos de vida sufocada, de tanto não ser o que queremos, de tanto cortar nossa intuição que tanto clama por nos guiar, não querendo deixar que sejamos só o que esperam de nós.

Essa questão está muito presente nas redes sociais da atualidade, mas muitas garotas, mulheres e senhoras ainda não se ligaram, se recusam a virar a chave e ver, se ver. Por esse motivo, eu desejo profundamente que cada mulher, tenha ela uma vagina ou não, se organize direitinho, ou se desorganize mesmo, talvez seja até melhor, para ver seus filmes de comédia romântica com brigadeiro, para pintar florezinhas em papel de carta, fazer chaveirinho para dar de presente, colecionar fotos de makes e tatuagens na pasta do Pinterest, ler seus livros de pornô romântico, plantar plantinhas, fazer ioga, meditar, nadar nua em um igarapé, produzir uma fantasia de carnaval, republicar posts engajados, lutar por uma causa, editar fotos e postar com frases impactantes (só coloca o nome do autor da frase, please), dançar zumba, dançar na sala, no quarto, aprender quadradinho de oito ou de 12, sei lá, cantar, colecionar cristais ou torcer por uma miss na TV. Faça por você o que você gosta, e deixa o mundo esperar um pouco e não acredite nunca mais que suas coisas são frívolas.

Há tempos eu postei um pequeno texto no Facebook sobre minha insatisfação com o preço da energia elétrica (quando eu ainda morava no Brasil), com o preço de tudo e com a impossibilidade de poder planejar uma viagem em família como eu gostaria naquele momento. Um amigo jornalista de longa data debochou, ironizando o meu problema “classe média”, enquanto tinha saído naquela semana uma matéria falando sobre o aumento no número de famílias em situação de extrema pobreza no país. 

A crítica não só foi injusta, pois sou uma pessoa sensível às causas sociais e busco fazer minha parte nesse contexto de desigualdade em que vivemos, como foi machista, visto que na semana seguinte o mesmo colega jornalista estava lá falando de futebol como se fosse o debate sobre a polarização política no mundo. Entende que a sociedade patriarcal sempre nos manipulou? A crítica sempre vai chegar, mesmo que tenhamos a melhor das intenções, mesmo que não estejamos fazendo mal a ninguém. Parece ser irresistível dizer a uma mulher o que ela tem de fazer e pensar, e nós, mulheres, também reproduzimos esse comportamento. Por isso, eu respeito tanto os nudes na internet, as que viajam sozinhas, as que fazem trabalhos manuais, as que são engajadas e militam em qualquer área. Sigamos, garotas, quebrando convenções desnecessárias à nossa liberdade e ao florescimento dos nossos talentos silenciados. 

Reencontro ancestral da vida para a academia

É preciso dizer primeiramente que escrevo de entrelugares de apagamento e subalternização. Da periferia da periferia e isso precisa ser lembrado, não para suscitar consternação, mas para explicar uma possível atitude defensiva desenvolvida ao longo da vida principalmente ao lidar com indivíduos fora de nosso território de origem. Sou amazônida, uma definição de múltiplas faces, a qual apreendo principalmente como alguém que nasceu na Amazônia legal, e se identifica/valoriza as culturas e biomas naturais da Amazônia brasileira. Meu lugar de fala é o de quem viveu com identidade emprestada e influenciada pela globalização, pelo braço colonizador euroamericano, sem nunca ter deixado de viver na prática, ou seja, nos sabores, nos pés na terra, no corpo que busca por água e ama árvores, a vida amazônica.    

Meu pai nasceu na ilha Tupinambarana, pseudónimo de Parintins, a ilha do Boi Bumbá Garantido e Caprichoso, lugar banhado pelo rio Amazonas, onde acontece o grandioso festival folclórico de Parintins, que é patrimônio cultural do Brasil, segundo o Iphan. Seu Tenilson Brandão meu saudoso pai, que veio a falecer aos 60 anos, migrou para Roraima ainda jovem e conheceu dona Luiza, minha mãe, com quem teve quatro filhos. Ela, roraimense, filha da terra, vinda de uma longa mistura de nordestinos com indígenas. Neta de uma Wapichana. Essa relação de origem entre Amazonas e Roraima, negros e indígenas é meu entrelugar de existência e resistência.

Por um acaso da vida, eu nasci no Amazonas, em Manaus, numa tentativa do meu pai de retornar ao seu estado de origem, mas com 40 dias de vida voltamos todos novamente para Roraima, terra na qual cresci. Retornei à Manaus aos 20 anos para fazer faculdade de Comunicação Social/Jornalismo. Tão logo peguei em mãos meu diploma, retornei à terra de Makunaima, meu Roraima. Emendei logo duas pós-graduações ao mesmo tempo. Trabalhei em Rádio, TV, jornal impresso, assessoria de comunicação, cerimonial e depois de inúmeras experiências vividas, iniciei a jornada de um mestrado em Letras, na Universidade Federal de Roraima, pesquisando sobre o saudoso artista Macuxi Jaider Esbell. Foi através do primeiro livro escrito por ele, intitulado Terreiro de Makunaima, que reencontrei minha identidade ancestral indígena, ou minhas identidades ancestrais, por isso o entrelugar mencionado no início desse texto.

Tenho um avô negro, um avô caboclo, bisavó nordestina do Rio Grande do Norte, bisavós indígenas do Norte, de etnias distintas. Essa mistura se homogeneíza ao longo dos anos e sem registros históricos sobre os povos que nos compõem, geralmente não pensamos para além de nossas raízes imediatas. Mas como nos diz Santo Agostinho, algo permanece em nossos palácios da memória, ventre da alma, ao longo de nossas existências e nos leva instintivamente a buscar, admirar, ver e se identificar com o que nos compõe, mesma que pareça inédita aquela primeira experiência visual e auditiva, que geralmente surge a partir da arte, essa porta aberta para nossas reminiscências.       

Mas vamos abrir espaço para uma contextualização maior: a subalternização da cultura indígena em Roraima, que ironicamente é o estado com maior população indígena do Brasil, me impediu de ter traçada uma linha de ancestralidade mais clara, possibilitando o reencontro com o passado de forma mais certeira. Só me restou uma única foto da carteira de identidade de minha bisavó Cecília, uma wapixana nascida onde hoje se localiza o município do Amajari, retirada da comunidade e inserida como trabalhadora em uma das fazendas no extremo-norte, a qual nunca saberei o nome. Restou-me na cor da pele, nos traços fenotípicos, a tez afro-indígena. Simplificando: minha cara de índia, morena, caboca, parda, imensa mistura.   

Face esta, que, desde a adolescência, em qualquer viagem para o eixo sul ou sudeste do Brasil me possibilitava experiências boas e ruins, nas quais eu era apontada como “índia”. Em Roraima, no entanto, essa identificação ficava perdida, escondida, talvez por um silencioso preconceito disfarçado em gestos e palavras em tom de brincadeira, mas que encobriam nada mais que o apagamento.

Os indígenas que saem das comunidades em busca de uma vida na cidade são chamados pelo não-indígena de ‘caboco’ ou ‘caboca’. Historicamente explorados, ocupando posições de subempregos, tendo sua cultura e modo de vida menosprezados, os cabocos e cabocas roraimenses se distanciavam cada vez mais da identidade indígena. Afirmar-se indígena ainda não é possível para muitos, por alienação, por falta de consciência de si, mesmo que ser indígena permaneça evidente na cor da pele, no fenótipo, na intuição.

Mas na contracorrente dos que migraram para as cidades, o Movimento Indígena em Roraima se organizou desde os anos de 1970, por meio da criação do Conselho Indígena de Roraima, instituição base para o surgimento de muitas outras, que representam etnias distintas, comunidades distintas, numa grande teia muito bem estruturada. O movimento indígena organizado contribuiu enormemente para que a identidade de tantas etnias não se perdesse, para que as 32 terras indígenas em Roraima fossem demarcadas e a partir delas, nelas, as comunidades fossem preservadas, o modo de vida indígena apesar de afetado pelo colonizador desde a chegada dos primeiros estrangeiros, espanhóis, holandeses e portugueses e com todo aparato opressor, entre religião e uso da força, apesar deles, a cultura desses povos resistiu e seguiu se fortalecendo diariamente, mantendo sua identidade/cultura preservada. Alguns desses indígenas saem de suas comunidades para buscar outro tipo de conhecimento, se embrenham no mundo dos brancos e voltam ainda mais potentes.

Meu reencontro com a identidade indígena nasceu a partir da arte, especificamente a partir da literatura escrita por um desses indígenas que vivenciou o mundo dos brancos para logo em seguida poder potencializar sua manifestação indígena ancestral. Como já disse, Jaider Esbell iniciou sua carreira a partir da publicação do livro Terreiro de Makunaima (2010) . A obra chegou em minhas mãos quando era editora de cultura no jornal Folha de Boa Vista e fazia resenhas literárias numa coluna de variedades assinada por mim. A leitura daquelas páginas me fez recordar do meu ser indígena de outras existências, das minhas ancestrais, especialmente, das sábias anciãs que deixaram seus ensinamentos nas mãos de minhas avós, tias e de minha mãe, dos ensinamentos que resistiram a uma vida toda permeada pela colonialidade.

A dissertação do mestrado em Letras, finalizado em 2019, pela UFRR, seria então toda sobre Jaider Esbell e sua relação com Makunaima, o criador e transformador das coisas todas do circum-Roraima, região etnográfica inserida da imensa Amazônia transfronteiras, aos pés do grande Monte Roraima, casa lar de Makunaima, de quem ele dizia ser neto. Foi por meio de Jaider que Meriná me foi apresentada. Ela era sua mãe de alma, como o próprio fazia questão de frisar. Meriná era o nome indígena da anciã Macuxi Bernaldina José Pedro, mestra dos saberes ancestrais dos lavrados de Roraima. Devota de Nossa Senhora e filha de Makunaima, mesmo tendo sido em parte convertida ao cristianismo, devido à presença forte da igreja católica em terras indígenas, ela nunca abriu mão de suas manifestações de fé ancestral e cantou seus cantos de cura até a morte prematura, por Covid-19 em junho de 2020. Preservava a língua Macuxi, sua língua mãe e pouco falava em português, mas sua linguagem artística por meio dos cantos e danças indígenas era universal, dialogava diretamente com as reminiscências indígenas de quem a ouvisse e tivesse em si um elo perdido com o passado, nessa ou em outras vidas. Foi assim que me vi comovida por Mariná desde o primeiro encontro ainda na Galeria de Arte Indígena Contemporânea de Jaider Esbell, numa tarde quente na cidade de Boa Vista no ano de 2018.

Tive a oportunidade de comer uma Damurida (comida típica indígena, feita a base de peixe cozido, pimentas diversas) feita por suas mãos e ouvir suas histórias meio contadas, meio cantadas, misturando palavras em português com a língua macuxi, com direito a mímicas e muitas risadas. Com Jaider Esbell ela pôde ir a São Paulo e seguir até a Europa, onde conheceu o Papa Francisco e para ele entregou carta pedindo apoio no combate ao Garimpo ilegal em terras indígenas e a preservação da mãe natureza. Estava em grande momento de atividade artística e política quando veio a pandemia e invadiu todos os cantos do planeta, inclusive comunidades indígenas.

Mãe de seis filhos, Meriná foi sepultada na capital Boa Vista. Os familiares aguardam até o momento autorização para poder levar seus restos mortais para serem enterrados conforme as tradições Macuxi, na terra onde ela viveu, a comunidade do Maturuca, na Raposa Serra do Sol.  

De minha parte o melhor que pude fazer para tentar reunir a sapiência dessa mestra dos saberes ancestrais foi estudar sua obra, sua performance cultural e registrar sua vida em forma de tese de doutorado, tarefa na qual me encontro desde 2021, ano 2 da pandemia. O que ela tinha a dizer ao mundo? Que tipo de literatura ela fazia? Quando morre uma anciã indígena, o que morre com ela? De que modo podemos levar a conhecimento do grande público o legado dessas pessoas? Como a literatura oral indígena, a chamada ‘oralitura’ deveria estar inserida no cânone da literatura brasileira? Como a poética oral de intérpretes como Vó Bernaldina deve ser lida nos ambientes escolares? Enfim, são perguntas sobre as quais me debruço e aprendo diariamente, lançando mão dos que vieram antes de mim e já escreveram seus saberes, seja na academia ou em livros e no ambiente virtual, hoje tão plural e rico de conhecimento.

Vivo um momento de escuta, leituras e pesquisa constante para compreender arte e vida, conhecimento e toda retórica dos povos ancestrais. A Unesp, instituição paulista que me recebeu como aluna no doutorado em Estudos Literários, me brindou com uma orientadora como Elizabete Sanches Rocha, totalmente aberta as ideias decoloniais, sensível aos saberes dos povos originais. Mais uma mulher que parece ter sido colocada nessa peça chamada vida, para abrir caminhos e ajudar na geração dos frutos de uma existência cultural mais plural e menos excludente para o país. Mais que isso, do meu entrelugar de raças, sinto-me cada dia mais presenteada e pertencente, pronta para seguir defendendo por meio da pesquisa científica, a enorme contribuição da ancestralidade indígena para o futuro do planeta.

Outros caminhos além do casamento

Esse ano de 2020 deu a todos algo importante para o crescimento espiritual: medo. O medo, tão recriminado nas frases feitas em contextos diversos nos leva a refletir e mudar de rumo em âmbitos diferentes da vida, tal qual árvore em busca do sol. Se você não teve medo de perder alguém que ama, vá buscar ajuda psiquiátrica. E esse medo de perder me guiou no sentido de buscar leituras que eu não tinha sobre caminhos possíveis a seguir, legados intelectuais deixados para a humanidade, teorias sobre formas de ver o mundo, a sociedade e sobre o modo como eu me vejo. Mas uma crônica é pouco para falar de tudo. Abordarei nesse segundo texto, de uma série de quatro, sobre o tema Mulheridades, a minha percepção sobre o modo como o mundo nos induz a acreditar que só existe o caminho do casamento para a felicidade.

Explico: as novelas brasileiras, na minha época, talvez tenham sido o primeiro contato externo com o amor romântico, casamento e família de comercial de margarina. Entre uma brincadeira e outra, vi meus pais vendo novelas e vi também muitas sessões da tarde. Hollywood, em suas produções, tal qual as novelas brasileiras, capricha nos contos de fada, nos casais perfeitos e tremendamente apaixonados. As histórias infantis sempre seguiram a mesma linha, nos enfiando goela abaixo princesas sempre em busca de príncipes salvadores. A música não fugiu do roteiro: encontrar o grande amor, casar-se e ter filhos sempre me pareceu o caminho natural de toda mulher.

Para minha sorte tive um pai e uma mãe que sempre destacaram o conhecimento como obrigatório para ‘ser alguém na vida’ e venho de uma família que, apesar de seguir o mesmo modelo patriarcal, é provida de mulheres fortes e independentes. Mais ainda: mulheres que nunca estiveram dispostas aceitar um homem qualquer só para ter alguém do lado e sentir-se realizada. Tenho tias, primas e uma irmã que seguiram o caminho da completude feminina por si só e assim levam a vida, sem depender de ser um casal para sentir-se bem ou ‘normal’. Educar meninas com a consciência de que a vida não gira em torno de encontrar o homem ideal para ser marido e pai dos seus filhos é essencial para uma sociedade mais equilibrada, justa e menos angustiada.

Não existem garantias de que uma mulher casada encontrará mais fontes de realização do que uma solteira. Hoje, casada há nove anos, acho impossível tecer qualquer tipo de métrica do que é mais fácil ou difícil (qualquer vida que venhamos a levar neste planeta é sempre muito difícil), mas é preciso não doutrinar nossas garotas a enxergar um único caminho, é preciso fazê-las acreditar que a opção de nunca se casar, nunca ter filhos é perfeitamente plausível e em consonância com a possibilidade de realização pessoal e vida plena.

O amor é algo lindo de se viver e existem inúmeras possibilidades de vivenciá-lo. Pode ser um grande desperdício de vida devotar sua existência na busca do homem dos sonhos. Até porque são cada vez mais raros. Homens bons, que conseguem ver além dos corpos, que se propõem a construir uma vida digna ao lado de uma mulher, definitivamente não são maioria na sociedade brasileira contemporânea.

Por isso se faz necessário apontar e validar outros caminhos, quebrando imposições sociais antiquadas. “Ficar para titia” sempre nos atormentou desde os primeiros anos de adolescência. Lições sobre como se portar para atrair e ‘segurar’ um homem sempre foram pautas nas revistas femininas desde minha mais tenra memória. O que nos induz a achar que este é um objetivo de vida e não consequência de uma existência cheia de conquistas pessoais.

Não esqueçamos que sempre estivemos rodeadas por elas: toda mulher conhece alguma outra mulher que simplesmente não se encaixa nesse perfil de esposa, mãe e muitas vezes se força a sê-lo, cansada de lidar com uma sociedade machista, na qual se ouve de ambos os sexos o quão importante é encontrar alguém.

É muito bom casar, ter filho, hoje é esse meu lugar de fala e não nego o quão desejei isso. Casei apaixonada, exigindo igreja, vestido branco, festa, lua de mel, casinha, animais de estimação e ser mãe. Tudo ocorreu no seu tempo, quase uma receita de bolo e talvez por isso eu tenha hoje a liberdade para dizer que esse é apenas um dos caminhos para a felicidade, não o único, não o mais correto, apenas mais um caminho.

Experiências de viagens solo, horas de estudo sem pausa, mudanças bruscas de planos, liberdade para decidir sozinha e pensando só no próprio bem-estar, horas de filmes, livros e ou séries interruptas e tantas outras benesses de uma vida de solteira precisam ser retratadas pela publicidade, pelas revistas e pelas novelas do mesmo modo e com o mesmo peso que se dá ao amor romântico, pois sabemos que sobre o manto sagrado da família tradicional se esconde muita infelicidade. Desculpe, mas já não aceito sem um olhar crítico a frase “família acima de tudo”. Creio hoje na paz de espírito, no combate a todo tipo de violência doméstica, no cultivo da alegria genuína e do amor-próprio como fonte importante para a sobrevivência sadia. Precisamos inclusive parar de arrumar crush ou marido para as amigas como se isso fosse um ato de bondade e digo quase como uma nota mental, visto que sempre fui muito boa em formar casais. A não ser que elas peçam, é preciso considerar que uma mulher pode ser muito feliz sozinha e mais ainda: que ela pode estar solteira sim e sozinha de fato, nunca, e é válido levar a vida assim, é válido se a noção de família dela girar em torno dos pais, irmãos tias, avô, avó, seja lá a formatação ideal ou não, construir uma família não necessariamente quer dizer casar-se.

E antes que pensem que estou separada (como ocorreu com tantos amigos nesse ano pandêmico) ou infeliz no casamento, adianto que não estou. Apenas compreendi os meandros que nos amarram e conduzem. Compreendi que existem muitas outras formas de estar bem com a vida e hoje manter-me casada tornou-se uma escolha consciente, uma opção feliz e não um fardo ou uma obrigação.  Se o medo de perder alguém que amamos sempre estará presente em nossas vidas e precisamos aprender a lidar com ele (e essa pandemia fortaleceu essa ideia) se faz necessário amenizar o medo de não seguir caminhos previsíveis e impostos de modo autoritário, mesmo que essa autoridade haja nas entrelinhas de nossa vivência cotidiana. Precisamos trazer esse tema para nossas conversas e abraçar outros modos, outros olhares sobre a existência feminina. É a maneira mais generosa de educar garotas brilhantes e mantê-las longe de relações desiguais, dolorosas ou violentas.  

A mensagem indecifrável do Chocalheiro

Ana Luiza acordou cedinho com o sol ainda se espreguiçando atrás dos buritizais. A luz daquela manhã tinha algo de especial. O pequeno coração da menina acelerou levemente como se soubesse que algo importante iria acontecer. Os guaribas já urravam com força, trepados em alguma árvore de mata próxima. Parecia mesmo é que a qualquer momento desceriam das árvores e invadiriam a fazenda em bando, devorando todos sem piedade. Ana afastou o pensamento medonho da cabeça e foi correndo para o jirau lavar o rosto, escovar os dentes e saiu andando rumo ao curral.

No retorno, acompanhava o tio que vinha com uma panela de leite de vaca ainda morno nas mãos. Na cozinha, a avó assumia a panela e punha o leite para ferver. Ana Luiza sentou-se e esperou o café da manhã. Ao lado do leite, sobre uma das bocas do fogão a lenha, um panelão cheio de mugunzá. Os cheiros de café, leite e mingau se misturavam e ela gostava daquilo. Era cheiro de manhã, de avó Joaquina e férias na fazenda.

Depois do café da manhã a menina correu para o quarto dos avós, onde procurava o chiqueirador que ficava escondido atrás da porta. Sentia-se poderosa com aquela varinha de madeira, de onde pendia um longo fio feito de couro de boi ou vaca. Arrumara-se como de costume, mas prendeu os cabelos negros e finos num rabo de cavalo no alto da cabeça. Sentia-se bonita assim. Com seus nove anos, não pensava muito sobre ser criança ou adolescente, simplesmente era. Corria rápido, disputava corrida com os primos maiores, seu apelido era chumbinho. Tinha a pele morena, queimada do sol forte da linha do equador.

Depois do ritual pessoal, foi de rede em rede chamar os primos que ainda dormiam. Já estou pronta, só esperando, anunciava. Tinham combinado de ir brincar na ilha do carrapato. Eram uns 10 primos, entre meninos e meninas, tendo a mais velha 12 anos e o mais novo, sete ou seis. A ilha do carrapato ficava distante quase um quilômetro da sede da fazenda. Uma pequena porção de mata, rodeada pelo lavrado plano, formada por árvores altas e palmeiras diversas, abrigando todo tipo de animais: das vacas e pacas a carneiros que se abrigavam do sol forte.

Parte interessante da brincadeira era se afastar da casa, da proteção dos adultos e se lançar no lavrado sem fim. Ana Luiza e os outros sabiam do Chocalheiro. Os avós contavam para todos os netos sobre o bicho, assim que tinham idade suficiente para compreender. A entidade surgia do nada, fazendo barulhos de chocalhos atrás de quem andasse desavisado no campo. Ana Luiza tinha nas mãos o chiqueirador e ia propositalmente no rabo da fila indiana que cortava o lavrado, passava por dentro dos buritizais húmidos, com fios de água escorrendo pela relva verdinha. Olhava para o lado apenas virando os olhos, como se não quisesse ser percebida por ele, ou eles, que poderiam estar ali, espreitando. Chegaram na ilha do carrapato, apanharam folhas verdes e colocaram no cós do calção, para proteger de pegar carrapatos. Era assim que tinham aprendido com os mais velhos. A temperatura caia pelo menos cinco graus ao adentrar a ilhota. A brincadeira começava logo ali, corriam uns atrás dos outros, apostavam corridas sentados sobre palhas de palmeiras Najá, furavam os pés eventualmente em algum espinho, tacavam bosta de gado uns nos outros, era uma farra. Quando chegava perto de meio dia era hora de voltar para casa e almoçar.

Ana Luiza se colocou novamente no rabo da fila, com o chiqueirador em punho firme. Foi quando, seguindo uma espécie de intuição teimosa, parou e virou-se para olhar detidamente a mata que já tinha ficado para trás. Viu então um vulto correndo de uma árvore a outra, como quem se esconde. Se arrepiou dos pés à cabeça, apertou o passo, mas já estava a seu lado, viu o capim sendo amassado como se algo nele pisasse, porém, nenhuma forma humana ou animal, só o chap chap pisando o capim, quando de repente, ouviu o primeiro tilintar dos chocalhos a se chocarem com força, plam plam plam! Ana sentiu ânsia de vomito no mesmo instante. Ainda ficou uns três segundos muda, pálida, tentando não acreditar no som nítido e alto, mas, de olhos arregalado soltou um grito desesperado: olha o Chocalheeeeeeeiroooo, dando uma lapada com o chiqueirador no que podia ver do bicho. A primaiada se espantou e foi menino correndo para todo lado, no rumo de casa à toda velocidade, os menores sendo quase arrastados pelos maiorzinhos em meio à gritos de ‘mamãe’ para todo lado.

Na velha casa da fazenda as mulheres na cozinha ouviram de longe os gritos e saíram arrepiadas de medo para ver o que tinha acontecido. Ana Luiza chegou gelada, esbaforida, sem conseguir dizer uma palavra sequer. Foi acudida pela mãe, tomou água, foi colocada na rede desfalecida, sendo abanada por todas. Ouvia vozes ao longe sem distinguir quem falava o que. A essa hora todas as crianças já tinham contado sobre o Chocalheiro. Ninguém tinha ouvido nada, só se assustaram com grito de desespero de Ana Luiza. A menina dormiu profundamente por mais de duas horas seguidas. Quando acordou, a mãe deu um caldo de caridade e ela ficou por ali, desconfiada, sem querer contar nada para ninguém. A tardidinha tiveram a ideia de levá-la na benzedeira que morava em comunidade indígena do lado da fazenda. Ela é dessas que vê visagem! Disse a rezadeira, com o galinho de folhas murchas de peão roxo nas mãos.

Voltaram para casa silenciosos nos cavalos. Ana Luiza vinha na garupa da mãe, enquanto o tio e a madrinha vinham nos outros cavalos acompanhando o trote. Cansada, porém serena, olhou para trás novamente e viu o mesmo vulto, o mesmo capim sendo amassado e o tilintar dos chocalhos, dessa vez mais baixo. Deu nervoso, mas ela não tinha forças para gritar, só fechou os olhos, agarrou forte na cintura da mãe e rezou Ave Marias até chegar de volta à fazenda.  Daquele dia em diante seria sempre assim, Ana era a neta que via e sentia coisas que ninguém mais via nos lavrados de Roraima. O avô e a avó a entendiam, eles também viam coisas desde muito pequenos. Conheciam bem o Chocalheiro, só não compreendiam o que aquela coisa queria dizer com tanto barulho. Quem sabe Ana Luiza no futuro pudesse lhes explicar.

Desistência

Existe um apego com a desistência

Com o desandar das coisas que começam para ser e se perdem, não sendo mais.

Existe algo de subversivo no sair fora

No desapego da ideia pré-moldada para vencer

Existe o opaco da repetição e a ciranda que te joga para longe da roda viva

Mas existe o prazo que te salva e induz

E existe luz que se acende a cada nascer e pôr de sol e pronto!

Muito perto

Dê-me de presente a sua presença

Sentindo com todos os cinco sentidos e meio ou seis 

Ouvindo meu murmúrio de mulher doida

Vendo meus cílios cerrados

Podemos acender um incenso para garantir que estamos sentindo o mesmo cheiro

Mantenha suas mãos fixas em toda extensão da minha pele

Lamba meus dedos devagar

E me deixa sentir a energia emanada de todo esse enrosco

Rolar para cima