Poesias

Poesia cotidiana

Célula

Olhem-se nos olhos, vocês aí!

Vocês, que mandei na mesma célula familiar

Entendam-se e curem suas dores

Bebam na mesma fonte do tédio

Mas olhem nos olhos uns dos outros e digam a verdade e ela vós libertará

É a temporada do coração

De sorver o rancor

Tirá-lo do emaranhado de células vitais e seguir criando.

 

Só deixa

Deixa-me tontear tua paz organizada

Deixa-me ser caos em suas mãos de pintor

Deixa-me bagunçar tua ordem e tua moral

De bons costumes o inferno está cheio

E o mal não prevalece na casa dos bons

 

Desistência

Existe um apego com a desistência

Com o desandar das coisas que começam para ser e se perdem, não sendo mais

Existe algo de subversivo no sair fora

No desapego da ideia pré-moldada para vencer

Existe o opaco da repetição e a ciranda que te joga para longe da roda viva

Mas existe o prazo que te salva e induz

E existe luz que se acende a cada nascer e pôr de sol e pronto!

 

Feminist

Quanta santidade fomos obrigadas a engolir e praticar

Sendo gente, sendo erro e angústia

Quantos medos fomos obrigadas a adotar

Como filhas rebeldes e ingratas

É hora de ser humana, imperfeita e soberana

 

Neve

Favos de água em um minuto

E a mágica se faz

Flocos de neve a cair na virada do segundo

Macios diante dos olhos do menino

Olha! Está nevando mamãe!

Olhos bem abertos e mãozinhas encostadas no vidro

Queria ver os cristais repousando no chão gelado

Vamos lá fora ver, vamos?

Antes de colocar os casacos a neve cessou

Por quê? Por quê? Disse o menino indignado.

Esse ano não nevou direito na Polônia, filho, é que o mundo está mais quente

Por quê? Por quê?

E me dói explicar o inexplicável

O menino não desanimou

Olhou-me com seus olhos de jabuticaba madura e disse com dedinho levantado ‘eu tenho um plano’

 

O calor

O flamejar das palhas do coqueiro

e a luz que entra pelo comungou

Dão a exata noção do dia quente que virá

deitando sem piedade nos ossos mornos dessa gente confusa

 

 Para Krenak e Esbell

Soube de uma América Latina inventada, um produto colonial

Imersos até os olhos na colonialidade das instituições

Soube dos povos indígenas da américa latina, vivos

Pujantes, resistindo há 500 anos de violências perversas

Soube da terra com febre, do mundo sem governança

E da necessidade ativa de agir localmente, pensando globalmente

Soube da cena trépida da canoa

Todos nós dentro dela, afundando

Soube, porém, não queria aceitar o lamento

Construiu uma rede de afetos, saiu exaltando mulheres

Abriu frestas de onde brotou luz em demasia, perdendo o controle

Fez-se clarão na noite e os olhos marejaram

Com soluços baixinhos, contagiados de um amor delicado, nunca antes sentido

 

O sonho

Parem o trem das utopias!

Deixem-nas descer, agora!

Abram as grades,  libertem-nas!

Pago qualquer preço para não morrer de sede

Pago impostos

Tiro roupas do varal

Chupo limão

Só não vivo sem ilusões todos os dias

Deem cá minhas utopias

 

Mestiça 

Meio negra

Meio índia

Eu sou o entre-lugar

Onde nada foi feito pra mim

 

 

Vanessa Brandão

Vanessa Brandão é jornalista amazônida. Manauara de nascimento, criada em Roraima, é indígena descendente do povo Wapichana. Doutoranda em Estudos Literários pela Unesp – SP, mestra em Letras pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), pesquisando sobre arte e literatura indígena. Tem especialização em Assessoria de Imprensa e Novas Tecnologias da Comunicação e em Artes Visuais, Cultura e Criação. Publicou seu primeiro livro em 2022, com o título ‘Entre Pinheiros e Caimbés’. Escreve poesias, crônicas e contos e trabalha na produção de um romance. Atualmente mora parte do tempo em Lódz, na Polônia e parte em Boa Vista, Roraima, no Brasil

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