Crônicas

Breve diário de expectativa x realidade

Boa Vista, 16 de outubro de 2020

Temos vergonha de pedir voto. Isso é um fato. Muitos já vieram antes de nós e deixaram um rastro de compra bastante incomodo, nefasto para uma real democracia representativa. Depois de eleitos, não representam ninguém, a não ser seus próprios interesses de ganhar dinheiro com a política. Mas o que fazer para apresentar nossas reais boas intenções nesse cenário antiético?

Além de estar com a família, eu vim para Boa Vista capital de Roraima, extremo Norte do Brasil, para trabalhar na campanha da minha irmã mais velha, a professora Cris Brandão. Preciso dizer antes de tudo que foi uma surpresa. Ela sempre foi, aliás, isso é algo comum à toda família, bastante crítica diante das muitas circunstâncias absurdas com as quais nos deparamos em Roraima e no Brasil e mundo, como um todo. Injustiças sempre nos incomodou, defender os menos favorecidos sempre foi o normal, o que nos foi passado como sendo coerente e correto. Quem foi criado com esse sentimento tem duas escolhas: ou  se entorpece com o pão e circo ofertado pelos governos ou parte para a luta, tentando transformar sua realidade a seu modo. Cris estudou muito para ser professora. Mestrado e doutorado em São Paulo foi um período de muito esforço pessoal e também familiar, afinal, sair de Roraima para morar na maior capital do país e a mais cara também, exigiu um esforço financeiro grande. A redenção veio logo após a conclusão do doutorado, quando ela foi aprovada para ser professora na Universidade Federal do Amazonas.

Como eu estou morando fora do país, ela tem tentado ser transferida para a UFRR, para poder ficar ao lado de nossa mãe, que já tem certa idade. A ligação entre elas sempre foi muito forte. Quando estive no Brasil em 2019, finalizando mestrado, ela contou sobre a inquietude nascida ali naqueles últimos meses, quanto a conjuntura de nossa democracia representativa. Quem nos representa no parlamento, seja ele municipal ou estadual? Com que mulheres podemos nos identificar na política e dizer: essa sim luta e defende, honra as nossas demandas? Nenhuma, infelizmente. Outro fator que ao meu ver colaborou para esse levante foi a décima onda feminista, que trouxe para nosso cotidiano questões fundamentais para o nosso bem viver e simplesmente são ignoradas ou deixadas de lado pela imensa maioria (me permitam a redundância) dos homens.

Falta de representatividade feminina nos espaços de poder, seja no Legislativo, Executivo ou Judiciário, violência crescente, machismo correndo solto, matando mulheres, sim, o machismo, mata. O sentir-se dono de uma mulher, o não saber lidar com a autonomia financeira delas, não saber compartilhar decisões, enfim, uma infinitude de ações que nem cabem aqui nesse espaço, nos fazem querer mudar o contexto. E digo ‘nós’ no coletivo, porque Cris e eu, nossa cunhada, as amigas da Cris, nossas tias, primas, mãe, enfim, é um coletivo de mulheres que compactua do mesmo pensar. E a candidatura dela recebeu essa adesão incrível da família, das amigas, amigos, conhecidos e assim estamos. Candidatura deferida pelo TSE, partido dando apoio ( a Rede Sustentabilidade tem apoiado e dado suporte, principalmente as candidaturas femininas) e a gente ainda chocada com tanta gente precisando, pedindo, querendo trocar voto por favor. É de desanimar em alguns fins de tarde, porém, seguimos. Faltam 29 dias para as eleições e estamos investindo todo nosso bom português na conscientização das pessoas sobre a importância de votar de modo ético, em candidato que você acredita, confia, que oferece boas propostas.

Ao longo do caminho, ela tem recebido renovadoras mensagens de apoio, afeto e carinho, pela coragem, pela disposição em pisar no que muitos chamam de ‘mar de lama’. Preferimos chamar de um rio cheio de banzeiros, mas possível de navegar de forma equilibrada, ética e responsável. Depois passo aqui e te conto como termina essa história.

Boa Vista, 17 de novembro de 2020.

A história não terminou como gostaríamos, mas teve tanto aprendizado no caminho, que não tem como estarmos tristes, apesar de em parte, decepcionadas. A velha história de votos prometidos e não concretizados se repetiu. Eu já tinha ouvido de diversos amigos que nem sempre as pessoas cumprem com a palavras no dia das eleições. Muitos gostaram das propostas, enviaram mensagens de apoio, disseram ter conseguido dois, três, 10 votos e ao final, ficou a pergunta: ué, quem não votou? Temos várias hipóteses para o ocorrido: muita gente mente aleatoriamente, muita gente admira, gosta da pessoa, curtiu as propostas, mas não ‘confia’ em votar numa mulher, ainda inexperiente em política e acaba votando nos velhos nomes, ou acabam vendendo o próprio voto na reta final. Um pouco de cada coisa, talvez. Sei que foram 251 votos. Para quem esperava 1500 pelo menos, é bem decepcionante. E como a derrota ensina, viu! Nos leva a intensas reflexões, finca nossos pés no chão, nos faz crer que tudo aquilo que a gente diz saber, simplesmente não sabemos.

Fato é que das 23 vagas para vereadores em nossa capital, Boa Vista, apenas quatro ficaram com mulheres. Não as conheço tão bem, mas em geral posso dizer que quase todas tem perfil conservador, assim como quase todos os homens eleitos. A frente progressista teve um ou dois representantes, o que não me causa espanto, visto ter o presidente do país, incríveis 60% de aprovação nas ultimas pesquisas sobre seu Governo. Roraima teve o maior índice, indo na contracorrente dos maiores estados brasileiros. São Paulo, por exemplo, tem 48% de ruim/péssimo para a gestão de extrema/direita que conduz o Brasil de modo atrapalhado, para ser leve.

Em contraponto a essa tendência conservadora em Roraima, o candidato majoritário da Rede Sustentabilidade, Linoberg, quase chega ao segundo turno. Por 1000 votos não venceu o candidato endinheirado e seguia para o segundo turno em disputa com o candidato indicado pela atual Prefeita. Professor assim como minha irmã, tinha o melhor projeto para a capital. Muita gente, consciente disso, votou nele. Foi a boa surpresa das eleições municipais 2020, marcada por um misterioso ‘problema técnico’ no TSE, que atrasou a contagem de votos a ponto de todo mundo ficar com a pulga atrás da orelha. Era o que os conspiradores extremistas queriam para colocar em cheque a urna eletrônica e toda a Justiça Eleitoral. Não me surpreenderia ter que votar na velha cédula de papel em 2022, essa sim, mais fácil de manipular.

Cris conta que nunca mais tinha dormido tão bem, como dormiu dia 15 de novembro, fim de tudo. A sensação de termos feito o melhor com as ferramentas que tínhamos é um fato. Eu fiquei mais agitada, no entanto. Demorei a pegar no sono, feliz com a união da família em prol da candidatura dela, com o empenho e dedicação da equipe, em sua maioria, formada por voluntários. Deu um up nas utopias de dias melhores e real mudança. As mensagens das amigas e dos amigos, dos familiares distantes, dos que passaram por nossas vidas profissionais, da comunidade católica de minha mãe, os amigos de infância, do esporte, enfim, o carinho recebido por ela e que resvalava na gente foi algo incrível, de recarregar os sonhos e inspirar para a próxima luta, mas é preciso mais, é preciso capilaridade nos bairros, com as lideranças. Mas como fazer isso de modo certo? Sem comprar ninguém, seja com dinheiro ou com favores? Entende como é complexo lidar com uma população viciada no interesse particular?

Fui dormir com os questionamentos. Por quê tantas mulheres, a maioria, ainda vota em homem? Mesmo morando na cidade com recorde de feminicídios e violência doméstica? Por quê muitos dos que prometeram voto, não votaram? Por quê as pessoas não tem consciência de classe? Aliás, os garis tem sim! Um gari foi eleito e que coisa boa.

Eu não quero romantizar essa experiência, dizer que foi só lindo e encantador.  Foi decepcionante também e isso precisa ser externado, porque sei que é o sentimento de muita gente. Campanha durante uma pandemia foi altamente conflituoso para gente, usar máscara no calor de Roraima é sufocante, a incerteza e os olhares de descredito de algumas pessoas foi muito chato. Aí tem vereador reeleito para o quarto mandato e em todo o ano de 2020, fez uma indicação e três projetos de lei (dois desses sendo entrega de honra ao mérito). Minha irmã preparada, estudada, disposta, com projetos e potência criadora para trabalhar de verdade, teve 251 votos. Bem, pelo menos 251 pessoas conscientes estiveram com ela e com o bem comum. Nos resta torcer para que os eleitos façam seu trabalho com zelo e dedicação. Como eu já disse em minhas redes sociais: somos andorinhas assumidas, tentando fazer verão. Ainda somos poucas, mas cheias de esperança, vontade de aprender, construir e realizar, talvez na política sim, talvez não, a única certeza é a de que ainda há muito o que fazer por Boa Vista, Roraima, pelo país. Obrigada a você que esteve conosco de algum modo.

 

Vanessa Brandão

Vanessa Brandão é jornalista amazônida. Manauara de nascimento, criada em Roraima, é indígena descendente do povo Wapichana. Doutoranda em Estudos Literários pela Unesp – SP, mestra em Letras pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), pesquisando sobre arte e literatura indígena. Tem especialização em Assessoria de Imprensa e Novas Tecnologias da Comunicação e em Artes Visuais, Cultura e Criação. Publicou seu primeiro livro em 2022, com o título ‘Entre Pinheiros e Caimbés’. Escreve poesias, crônicas e contos e trabalha na produção de um romance. Atualmente mora parte do tempo em Lódz, na Polônia e parte em Boa Vista, Roraima, no Brasil

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Vanessa Brandão

One thought on “Breve diário de expectativa x realidade

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    Amiga, que texto lindo! Parabéns por sua luta, a da sua irmã, por ser você essa pessoa tão linda. Pensei que estaria em Boa Vista, mas não pude ir e não consegui votar na Cris e no Lino como queria. Seriam votos bem dados e disso tenho certeza. Lamento que ainda haja tanta gente adormecida.

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