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#36 Crônica sobre Luigi

Difícil é escrever sobre ele de forma analítica, sem deixar falar apenas o amor de mãe, esse sentimento gigante que nos invade durante os nove meses de gestação e explode no nascimento, bagunçando toda a nossa estrutura. Ontem, no entanto, mais uma vez um amigo da família nos alertou para a responsabilidade de encaminhar o Luigi de modo a explorar suas potencialidades cognitivas. O amigo é professor doutor, pai de três garotos, entende a importância de uma boa educação formal e não formal e nos motivou a buscar sempre a melhor escola possível para nosso menino.

Luigi está quase na idade limite para se fixar em um colégio. Essas idas e vindas ao Brasil não serão possíveis com a mesma maleabilidade. A pandemia interrompeu a adaptação na escola polonesa. Estava tudo indo super bem e agora nos vemos sem saber o que esperar no ano escolar. Enquanto isso, nosso menino segue em casa, exigindo da gente um esforço maior de atenção e educação. Não é fácil depois do almoço ter que fazer entretenimento. Ele poderia só dizer um “mamãe vamos brincar?”. Mas não. Ele é mais complexo: “Mamãe, depois do almoço é hora sabe de quê? De entretenimento”. Me escapou onde ele aprendeu essa palavra. Talvez entre uma conversa e outra com o Reinaldo, ele tenha se apossado dela e me fala com todos os dias, com todos os “erres, emes e enes” possíveis. Eu vou, cheia de preguiça, mas vou promover o tal do entretenimento para ele. Em verdade, nós mães é que somos o próprio entretenimento, nossos olhos atentos e focados é melhor do que qualquer brinquedo caro.

Nas brincadeiras de hoje tive que incorporar um robô com trauma. Isso. Na explicação da brincadeira ele me diz que esse robô tem traumas do irmão mais velho, que é mais forte que ele e mais rebelde. “O seu robô lembra de tudinho, mamãe, de todas as brigas, isso que é trauma, tá bom?”. “Tá bem filho”, respondo meio chocada. Lá vou eu me movimentar como um robô traumatizado, que entrará em combate com outros robôs enquanto o irmão dele (o fortão) assiste tudo escondido em um árvore. Eu faço lutas imaginárias, lanço raios lasers, elimino robôs inimigos quando então, o robô bonitão (interpretado pelo Luigi) sai da árvore, se joga na minha frente, lança um raio elétrico que corta a cabeça do meu robô, matando-o imediatamente. “Como assim Luigi? Ele acabou com meu robô?”. “Sim, mamãe, quero mudar de brincadeira, eu só estava pensando que você não é boa de brincadeira de luta não!”. Eu me achando a mãezona que submerge na brincadeira, me esforçando em sonoplastias que nem sabia que sabia fazer para o moleque dizer que não sei brincar de lutas. Aí meu ego reclama né? “Meu filho, olha, é o seguinte, se tem alguém que entende de luta nessa casa, esse alguém sou eu, tá? Eu sou faixa preta de Karatê, lembra disso?”. Ele passou para outra brincadeira sem dar a mínima atenção para meu enunciado.

Depois éramos dois dinossauros atrás de comida na floresta. Luigi conta que achamos um grupo de humanos e vamos devorá-los. Eu arregalo os olhos pensando se aquilo al não estaria muito violento para uma brincadeira de uma criança de cinco anos. Ele percebe meu choque, ao que diz: “Calma, mamãe, eles são bandidos tá?”. “Ah, tá, entendo”. Seguimos a brincadeira e devoramos os bandidos, ele três de uma vez, eu dois de uma vez, pois estou de dieta. Mas de repente Luigi para e me olha, repensando o contexto da história: “Sabe o que é, mamãe, é que o anjinho pode falar a qualquer hora com o coração dos bandidos e eles podem se arrepender, então eu não quero devorar eles não tá? Vamos brincar de outra coisa?”. E assim, mudamos para a próxima brincadeira, mas não sem antes eu ficar refletindo sobre a noção que ele me apresentou sobre a possibilidade de arrependimento do homem mau, o que o tornaria bom, logo, não sendo viável puni-lo de forma definitiva. É impressionante essas pequenas descobertas. A gente só sabe mais sobre o que nosso filho sabe, se tivermos oportunidade de prolongar o tempo de convivência juntos.  É num instante despretensioso que as pequenas pérolas de sabedoria dele são lançadas. Eu então as aparo, observo, limpo e vemos juntos o brilho daquilo. Quando perfeitas, como nesse caso da possibilidade de arrependimento, as guardo como joia para o coração. Enquanto a escola não vem, estou sendo eu a privilegiada de ter as melhores horas com ele, não sem cansar, não sem reclamar, confesso, mas investindo o meu melhor nesse momento, tanto que escrevi essa crônica semana passada e só hoje conseguir revisar. Provavelmente conseguirei publicar nos próximos dias.

Vanessa Brandão

Vanessa Brandão é jornalista amazônida. Manauara de nascimento, criada em Roraima, é indígena descendente do povo Wapichana. Doutoranda em Estudos Literários pela Unesp – SP, mestra em Letras pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), pesquisando sobre arte e literatura indígena. Tem especialização em Assessoria de Imprensa e Novas Tecnologias da Comunicação e em Artes Visuais, Cultura e Criação. Publicou seu primeiro livro em 2022, com o título ‘Entre Pinheiros e Caimbés’. Escreve poesias, crônicas e contos e trabalha na produção de um romance. Atualmente mora parte do tempo em Lódz, na Polônia e parte em Boa Vista, Roraima, no Brasil

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One thought on “#36 Crônica sobre Luigi

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    Entre o Luigi Robô e a mamãe faixa preta, aposto no raio laser. hahahahaha Lindo texto.

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