CrônicasVivendo na Polônia

Ideias de Luigi aos seis anos

Registro do nosso passeio nessa primavera fria, em Lódz, na Polônia, em 22 de maio de 2021. Luigi com seis anos e sete meses.

Chegamos à metade da primavera e nada de poder desfrutar de um tempo firme. A temperatura média está girando em torno dos 15º e a chuva decide cair justamente nos fins de semana, depois de deixar o céu nublado quase todos os outros dias. Mesmo assim saímos, eu e Luigi, enquanto o pai foi para a aula. Sentamos num dos restaurantes da Piotrkowska e pedimos uma pizza. Erramos na roupa e passamos um pouco de frio, o que nos obrigou a comer rápido e voltar para casa correndo.  Meu garoto está crescendo e começa a me falar coisas de rapaz, um rapaz consciente e cheio de ideias. Pensei em contar um pouco dessa fase em três pequenos diálogos, para que ele saiba, na posteridade, de suas inclinações desde os seis aninhos.

Eu estava fazendo o almoço quando ele chegou à cozinha: “Mamãe, acho que em 2040 por aí, os humanos já estarão fabricando carnes para não precisar matar mais os animais. Vai ser assim, quer fazer churrasco, compra picanha fabricada, quer comer um peixinho, compra peixinho fabricado, quer costela de porquinho, tem costela fabricada, acho que no futuro já vai ser assim e aí as vacas e os porquinhos, todos os animais vão ficar só de boa, não acha?”. “É, filho, provavelmente sim, vamos torcer para que seja assim”, respondi. Mais tarde lá vem ele novamente, me pedindo para baixar o jogo do ganso Reginaldo. “Que jogo, filho?”. “Esse daqui ó”, me mostra o nome no Tablet. Fui pesquisar sobre o jogo e ele ansioso na minha frente, começou a dizer: “Mamãe, assim, esse é um jogo um pouco, de um jeito que você provavelmente não vai gostar, mas por favor, deixa eu jogar”. “E por quê não vou gostar, Luigi? Qual é o objetivo do jogo?”, pergunto, ele se enrola, disfarça e diz: “Basicamente é atazanar a vida das pessoas. O ganso vive na fazenda com uma família e aí faz peraltices, tipo, escondendo ferramentas do dono da fazenda, roendo laço, pegando o chapéu dele”. “Luigi, que jogo mais sem noção, filho, pra quê você vai jogar isso, o que isso vai te trazer de aprendizado?”. “Mas é que é só a vingança dos bichos, reflexo da relação dos humanos com os animais, entende? Ele só faz peraltices, o dono da fazendo mata os animais, mamãe!”, diz, gesticulando com as mãozinhas. Eu pensei em fazer todo um discurso sobre não se vingar, sobre manter a calma, mas diante da argumentação dele, que de todo não está errada, afinal, nossa relação com os animais é a pior possível, só disse que a gente não deve atazanar a vida de ninguém e destaquei a importância de saber diferenciar a vida real dos jogos, sempre.

O pai baixou a saga do Reginaldo, o ganso babaca, e prometeu jogar com Luigi no dia seguinte, 18h, horário no qual acabaria sua aula. Luigi acorda geralmente 8h, nesse dia, porém, levantou às 6h30 e passou o dia perguntando quantas horas faltavam para dar 18h. O joguinho parece bem mais inofensivo do que imaginei, mas fez sucesso esta semana.

Nessa sexta-feira, pouco antes de irmos passar frio na pizzaria, ele pediu para conversar comigo sobre a escola. Luigi só retorna as aulas presenciais em setembro, quando começa o ano letivo por essas bandas. “Mamãe, sabe o que é, é que eu queria que você achasse uma escola que termina tipo às 13h sabe?”. “Por quê filho? Qual o problema?”. “É que aqui as escolas demoram muito, aí eu tenho que almoçar lá, eu não gosto daquela comida, daquele chá, eles servem só uma carne sem nada, uma coisa por vez entende? E eu gosto de uma comida mais complexa, entende? Que nem você faz?”, disse ele. Eu sorri ao imaginar o que ele quer dizer com ‘complexa’ e lembrei do nosso mexidão. É algo que nos impacta nessa mudança de país. As escolas começam geralmente às 8h ou 9h e seguem até as 15h ou 16h, logo, as crianças tomam café, lancham e almoçam no local. No café da manhã são servidos chás, frutas e verduras (cara de estranhamento), as vezes tem pão. No almoço, primeiro a salada, depois uma sopa de legumes e só depois uma proteína (carne de boi, peixe ou frango) acompanhado de batata ou somente com molho). Luigi, acostumado a comer tudo junto, misturando arroz, farofa, salada, carne, feijão, obviamente não achou nada ‘complexa’ a culinária polonesa.

Eu tive e terei que seguir explicando sobre as diferenças culturais e já sei que teremos de enfrentar um período complicado de adaptação, não só no idioma, mas principalmente com relação a comida e ao horário do almoço, que sempre foi momento de reunião familiar aqui em casa. Alivia saber que tudo o que leio sobre adaptação de crianças a um novo ambiente é unanime em afirmar que elas sempre dão um jeito de amoldar-se e que sofrimento mesmo cabe a nós, mães, esse ser meio bobo, que acha ser possível livrar seu rebento das vicissitudes da vida para sempre. Alegro-me com as tendências manifestadas por ele de querer proteger os animais e não simplesmente olhar a raça humana como superior a todas as outras e sigo ansiosa vendo-o virar protagonista da própria história, mesmo preferindo o conforto eterno de almoçar com os pais, em casa, saboreando a bem elaborada culinária brasileira. Crescer nem sempre é legal, ou fácil, filho, mas essa é nossa missão.

 

 

Vanessa Brandão

Vanessa Brandão é jornalista amazônida. Manauara de nascimento, criada em Roraima, é indígena descendente do povo Wapichana. Doutoranda em Estudos Literários pela Unesp – SP, mestra em Letras pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), pesquisando sobre arte e literatura indígena. Tem especialização em Assessoria de Imprensa e Novas Tecnologias da Comunicação e em Artes Visuais, Cultura e Criação. Publicou seu primeiro livro em 2022, com o título ‘Entre Pinheiros e Caimbés’. Escreve poesias, crônicas e contos e trabalha na produção de um romance. Atualmente mora parte do tempo em Lódz, na Polônia e parte em Boa Vista, Roraima, no Brasil

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