Crônicas

Sobre proteger nossas crianças dos lobos em pele de cordeiro

Essa madrugada acordei pensando em algo que vinha evitando entender, me aprofundar, tamanha dor que me provoca. O caso do menino Henry desafia meu entendimento, detona minha fé na humanidade, deixa meu coração de mãe em frangalhos. Mais ainda por me fazer imaginar quantas crianças nesse mundão podem estar passando pela mesma situação de violência, dor, desespero. Pobres, ricas, aqui e lá. Crianças não deveriam sofrer, mas sofrem.

É responsabilidade de todos mitigar a aflição dos pequenos. Está na lei esta responsabilidade coletiva. Mais do que isso, é nossa única chance de construir um futuro menos violento para a raça humana: salvar as crianças das misérias de nosso tempo, desse mundo de provas e expiações. O espiritismo tenta nos explicar os ciclos de violência que se repetem e nos deixam assim, estarrecidas e inconformadas, mas ainda assim minha revolta transcende.

Ver um homem cheio de privilégios na vida, que pôde estudar, tornar-se médico, ser uma autoridade em sua comunidade, gozar de vantagens diversas em nossa sociedade, abrigar dentro de si maldade suficiente para cometer essa atrocidade com um inocente é absolutamente incompreensível. Não me conformo também com a cegueira dessa mãe e com outros pais e mães que não denunciaram o assassino, no passado. O silêncio é muito perigoso. É preciso quebrá-lo para o bem de todos, é importante avisarmos umas às outras sobre toda e qualquer violência, deixar que as feridas da agressão praticada tragam consequências para a vida do agressor, seja ele quem for. E mais importante ainda é conhecer antes de confiar. Investigar antes de confiar. Sentir antes de confiar. Tudo visando proteger nossos inocentes, num jogo onde ninguém pode se omitir, familiares, amigos, amigas. As redes de apoio precisam funcionar.

É tradição dos povos indígenas a responsabilidade coletiva com as crianças da comunidade. Para o não-índio ocidental, o ditado popular “Quem pariu Mateus que o embale” é repetido cotidianamente. Uma outra forma de defender que os pais cuidem sozinhos de seus rebentos. Em muitos casos, essa função fica a cargo da mãe solo.  Até certo ponto faz sentido, afinal, não se pode delegar ao outro a missão sublime de criar um filho, porém, é preciso ter a humildade para pedir ajuda e ao mesmo tempo, ter a ousadia de ir além do pitaco e alertar pais e mães diante de um perigo iminente, mesmo que isso custe uma conversa dolorosa, uma amizade abalada. Proteger as crianças humanas deve ser responsabilidade de todos, para o bem da coletividade.

Aqui na Polônia as leis de proteção à criança são igualmente rigorosas e a sociedade é especialmente contra, inclusive, à palmada. Se nas escolas o foco é desenvolver a independência e a força dos pequenos, com certa ‘frieza’ pedagógica, nas ruas da cidade se você corrigir seu filho com uma palmada ou coisa parecida corre o risco de ter que se explicar para a polícia. Vizinhos e parentes também denunciam facilmente qualquer sinal de maus tratos e se tem algo que devo reconhecer como amoroso nos poloneses, é o quanto olham e tratam com carinho as crianças, sejam elas as suas ou a dos outros. Mesmo sabendo que eles não toleram muito bem o gargalhar e o falar alto de nosso Luigi, os vejo sempre sorrindo para ele. O próprio curumim, vaidoso que só ele já nos disse: “Aqui todo mundo me acha bonito, mamãe, eles olham pra mim e sorriem, aí as vezes eu sorrio de volta”.

E sobre esse triste caso no Brasil, o que nos resta é cada um fazer sua reza forte em pedido de proteção e luz ao pequeno Henry, torcer para que a justiça dos homens se concretize e olhar ao nosso redor, quem sabe diante de si, avaliando criteriosamente se conhecemos alguma criança que tenha dado sinais de estar em perigo ou que esteja sob o julgo de algum lobo em pele de cordeiro. Lutemos.

Vanessa Brandão

Vanessa Brandão é jornalista amazônida. Manauara de nascimento, criada em Roraima, é indígena descendente do povo Wapichana. Doutoranda em Estudos Literários pela Unesp – SP, mestra em Letras pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), pesquisando sobre arte e literatura indígena. Tem especialização em Assessoria de Imprensa e Novas Tecnologias da Comunicação e em Artes Visuais, Cultura e Criação. Publicou seu primeiro livro em 2022, com o título ‘Entre Pinheiros e Caimbés’. Escreve poesias, crônicas e contos e trabalha na produção de um romance. Atualmente mora parte do tempo em Lódz, na Polônia e parte em Boa Vista, Roraima, no Brasil

Vanessa Brandão tem 76 posts e contando. Ver todos os posts de Vanessa Brandão

Vanessa Brandão

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *