CrônicasVivendo na Polônia

Diário do isolamento II

Hoje, 25 de abril de 2020, completamos 45 dias de quarentena. A cidade começou a implementar, no dia 21, a ‘nova normalidade’. Nos permitiram ir aos parques. Eu não achei que sentiria falta de ter carro morando em uma cidade com transporte coletivo eficiente, mas fato é que diante desse cenário, um carro seria bom, pois minha vontade é de ir a um parque novo todos os dias e se possível, subir montanhas e ficar até tudo isso passar.

Fomos ao parque que fica na rua paralela à nossa. Luigi sorriu tanto. Eu fiz fotos ate cansar a paciência do Reinaldo. Ele sempre tímido nessas horas, visivelmente torce para a tortura passar. Coitado. Quem mandou casar com uma jornalista? Não só por isso, hoje em dia quem não gosta de tirar fotos? Ainda mais quando temos uma luz perfeita como essa.

Agora o uso de máscaras é obrigatório. Conseguimos comprar máscaras pela internet. São pequenas, estranhas, mas atendem ao propósito de proteção. Eu já não sei o que sinto sobre tudo isso, estou confusa, sem sentimentos. Parece que nada acontece aqui, enquanto que no Brasil, meu amigo, que loucura foi essa de ontem (24). Passamos o dia acompanhando as notícias. Vimos os dois discursos, de Moro e Bolsonaro, ao vivo pela Globonews, a qual conseguimos acessar pela internet graças ao Reinaldo.

Máscaras caíram. Li depoimentos de idolatras arrependidos aos montes e isso é bom, não para que eu possa dizer ‘eu avisei’ o que também é bom, mas por abrir caminho para a possibilidade de mudanças no cenário político. A saída dessa família para mim representa uma chance de fortalecimento da democracia e de tempos de paz e união no Brasil, se é que um dia isso será possível novamente. Talvez tenhamos que conviver com a síndrome neofascista para sempre. Sementes ruins, depois de regadas e germinadas, crescem como erva daninha.

Hoje conversei com três amigos sobre tudo o que está acontecendo no país. Edgar Borges me mantém informada com os melhores memes. Além de meu conselheiro literário, ele sempre está bem informado e versamos sobre política, ideologia, utopias. Tharin tem me inspirado em temas diversos, de feminismo a literatura, passando por política, ideologias (temos buscado informações reais sobre socialismo e comunismo). Ela é vegana e flerta com o ecosocialismo e temos trocado ideias, inclusive, sobre o conceito ‘família tradicional’ e suas contradições.

Conversar com minha mãe e minha irmã também faz parte dos meus dias. Elas me passam uma sensação de esperança e de que meu porto seguro está ali, me esperando se algo der errado. Outra com quem converso diariamente é Jamilly. Somos tão diferentes em algumas coissa e tão parecidas em outras, sempre foi assim. Hoje batemos um papo longo sobre religião fé, destino, fatalidades e até sobre política, tema que nem sempre é do agrado dela, mas estou feliz por entender que para mim é inevitável falar do assunto.

O curso de escrita literária e as aulas de inglês preenchem meu tempo por aqui. O primeiro, só prazer e aprendizagem. Tenho lido muito, visto as aulas on-line e mergulhado no mundo literário com tranquilidade. Já para o inglês tenho uma preguiça gratuita. Tenho aulas quase todos os dias e as faço feito remédio, sempre acreditando que em algum momento virá do além alguma empolgação.

Acordo pelas manhãs e faço aulas de yoga, ginástica localizada, preparo o almoço ouvindo sempre algum podcast interessante sobre temas subversivos. Tenho aprendido muito. A cada 30 minutos Luigi demanda atenção. Brincamos um pouco, assistimos a algum desenho juntos. Ele faz elogios lindos: você é mais linda do que a neve! Eu vou fazer o que? Sorrir, claro. Isso é bom demais. Cada dia mais, ele tem se mostrado interessado por animais. Me pede para fazer pesquisas sobre raposa vermelha, raposa ártica, insetos, pássaros, dinossauros, enfim. Ele também tem aprendido muito. Seguimos firmes, cheios de saudade dos nossos amores, porém, felizes. É, acho que podemos chamar esse estado leve e natural das coisas de felicidade. Não vivemos em êxtase, mas os momentos doces são muitos e aprazíveis. Diante de tantas dores pelo mundo, eu só rezo pela permanência da normalidade dos dias, com saúde e um pouco de esperança.

Vanessa Brandão

Vanessa Brandão é jornalista amazônida. Manauara de nascimento, criada em Roraima, é indígena descendente do povo Wapichana. Doutoranda em Estudos Literários pela Unesp – SP, mestra em Letras pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), pesquisando sobre arte e literatura indígena. Tem especialização em Assessoria de Imprensa e Novas Tecnologias da Comunicação e em Artes Visuais, Cultura e Criação. Publicou seu primeiro livro em 2022, com o título ‘Entre Pinheiros e Caimbés’. Escreve poesias, crônicas e contos e trabalha na produção de um romance. Atualmente mora parte do tempo em Lódz, na Polônia e parte em Boa Vista, Roraima, no Brasil

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