Diário do ‘começo do fim’ do isolamento: algumas coisas mudaram para sempre
Ontem foi um daqueles dias em que a tristeza bate sem um motivo específico. Eu estava no sofá, absorta em tédio e rabugice, olhando algum conteúdo inútil no celular, quando o companheiro me olha consternado: “O que foi amor? Por quê tá triste?” Aí tudo transbordou. Fui para o quarto, me cobri toda e fiquei lá encolhidinha como quando era um feto no ventre da mamãe. Tenho essas nostalgias singulares.
Reinaldo ficou entretendo Luigi na sala para que eu pudesse elaborar minha tristeza sem causa (sem causa objetiva, digo, afinal, em meio a uma pandemia mundial, só não fica triste nunca quem é louco ou bem egoísta). Tentei dormir, não deu. Li um pouco, cansei. Organizei fotos no celular, deixei. Fiquei parada olhado e pensando em nada. Depois de uns 30 minutos inerte (assim como o pássaro Oswaldo, mistério que habita o quintal do amigo Edgar Borges), senti-me bem, voltei para a sala já animada para continuar organizando minhas poesias em um arquivo, dando formato a um possível livro com elas.
Reinaldo me olhou aliviado e disse: “Você precisar se organizar para ir ao shopping comprar alguma coisa”. Eis o ponto da mudança. Essa mesma frase há dois meses me deixaria imediatamente serelepe feito um coelho. Hoje só consegui pensar “Ai, não quero” sentindo um vazio e um medo estranhos. Acho que presenciei a morte do consumismo em mim. Eu já vinha nesse processo de comprar somente o que realmente precisava, selecionando muito bem cada coisa, analisando marcas e seus modos de produção etc. Agora, depois de 60 dias em isolamento, comprando somente alimento, produtos de higiene e ou remédios, vitaminas, todo o resto perdeu a graça.
Vou comprar uma ‘brusinha’ para passear onde? Vou gastar com uma calça nova para quê? Vou comprar aquele tênis branco e usar indo ao supermercado? Ou ao shopping, de máscara, me arriscando a contrair essa doença? Não faz mais sentido o ato de comprar e talvez não faça por muito tempo. Hoje é dia 07 de maio de 2020, a Polônia contabiliza 14.740 casos de Covid-19. Até agora, 733 vidas se foram. Os números colocam o país em posição privilegiada em relação a outros países da Europa, estamos na segunda semana das medidas de relaxamento, agora com a abertura dos shoppings e algumas lojas de rua. Sempre com muita cautela, somos obrigados a usar máscaras e a ficar distante de outras pessoas pelo menos dois metros. Em caso de aumento no número de casos a partir de agora, voltamos ao isolamento total imediatamente, então é um teste controlado.
E também não nutre pensar em comprar, quando no Brasil as coisas estão piorando dia a dia. Minha família, meus amigos todos lá, expostos a adoecer e encontrar um sistema de saúde colapsado. Isso é fonte de aflição e de daquela ansiedade obscura, que permeia o nosso subconsciente e fica lá, incomodando. E o que mais me dá nos nervos é pensarem que apenas a indicação do “fica em casa” vai resolver a questão. Meus amigos, a Polônia implementou desde o início da pandemia, multa de 5 a 30 mil dinheiros para quem fosse pego saindo de casa aleatoriamente, sem comprovar que ia ao super ou trabalhar em serviços ESSENCIAIS. Negligenciar a necessidade disso no Brasil é ser assassino por tabela. E por falar nessa palavra forte, dolorosa, assassino, não consigo parar de revirar de raiva ao lembrar das declarações do inominável presidente, minimizando um problema absolutamente sério, dizendo diversas vezes para que a população “voltasse a vida normalmente, pois aquilo tudo era exagero da mídia, não passava de uma gripezinha”. Essas falas já estão na história triste desse país. Se hoje o número de mortes é de 8.588 (subnotificadas, claro), poderia ser bem menor se a responsabilidade tivesse pautado esse homem ruim. Lição dolorida para todos os brasileiros.
As dores deste momento vão ficar por muito tempo nas nossas memórias. Dores de todos os tipos.