CotidianoCrônicas

#31 Eu não tenho amigas perfeitas

Eu não tenho amigas perfeitas. Nem amigos. Assim como não pude escolher familiares perfeitos, os laços com amigos de verdade estão além do visível. Por isso me assusta a “dica coach” seja amigo de quem tem sucesso, amplie seu network todos os dias e blá blá blá. Primeiro que isso não seria amizade verdadeira e sim uma relação marcada pelo interesse puramente “comercial”. Depois, me preocupa muito essa ânsia de perfeição e esse declarado discurso de “se afaste de pessoas tóxicas”, para sair de perto de quem tem a coragem de minimamente discordar de você. Ao contrário, é valioso demais ter aquele amigo que com jeitinho, te diz as verdades que demoramos a perceber ou que não queremos ver.

Eu tenho as mesmas amigas há bastante tempo. Infelizmente não tenho aquela disposição/tempo para conhecer novas pessoas com frequência. São poucos os que passam de colegas a amigos. Talvez um ou dois a cada ano. E digo com enorme sinceridade, queria ter mais coragem de me entregar para as pessoas, mas já sofri alguns enganos na adolescência e já na vida adulta, recolhendo-me um pouco mais. Então alimento com carinho as minhas amizades de sempre e o mais importante, não as condeno pelos defeitos que sustentam. Já ouvi alguns comentários do tipo: “Nossa, vocês são tão diferentes, não sei como são amigas”. É que tem que ser assim mesmo! Tenho amiga explosiva, bem doida, que é capaz de pisar no teu pé e se vingar diante de alguma injustiça, mas que tem um coração ingênuo e amoroso. Tenho amiga rancorosa pra burro, mas capaz de fingir que nada aconteceu depois de uma discussão desnecessária. Tenho amiga com pensamentos neoliberais e individualistas insuportáveis, porém, dona de uma capacidade única de defender e praticar a liberdade feminina sem medinho ou falso moralismo. Cada uma a seu modo me ensina e eu não me afasto no primeiro risco, no primeiro desencontro de opiniões e é muito isso que vejo no mundo atualmente. Intolerância, como se as pessoas não valessem mais a pena. Como se as relações profundas, aquelas com troca de segredos e mágoas, fossem pesadas demais, sólidas demais para essa mania de liquidez que o humano contemporâneo parece adorar.

Eu tenho amigos com o ego lá nas alturas. Quase insuportáveis. “Não sei como tu aguenta fulano”. É que ninguém é apenas uma coisa. Todo mundo é múltiplo, vasto, com defeitos e também virtudes e ao se aproximar, eis o milagre, a gente se permite conhecer e aprender coisas incríveis, que não se lê em nenhum livro, em nenhum tutorial de Youtube, menos ainda nos bancos das universidades. E vai muito além do interesse de aprender, é algo de almas que se falam, como se já se conhecessem de outras eras, outras esferas.

Por isso tenho tanto receio do discurso da ‘toxidade’, que virou moda. Eu mesma já utilizei como desculpa para me fechar de algum modo a algumas pessoas. Na real, porém, sei que é mais medo de trabalhar a aceitação de que ninguém está aqui por ser perfeito, do que a bizarra conclusão de que a pessoa é tóxica. O perfeito nem existe, talvez nem Jesus (ele devia ser bem aquele tipo super sincero, que hoje em dia ninguém tolera).

Ah, mas existe o fenômeno do distanciamento por mudanças ideológicas e intelectuais. Sim, existe mesmo, mas, pelo menos para mim, isso nunca foi motivo para terminar uma amizade. Ao contrário, é gostoso ir compartilhando devagarzinho tudo de novo que você tem aprendido. É gostoso ir avisando: “Olha, tô lendo isso e aquilo”, “mudei meu pensamento sobre filhos, sobre casamento, sobre roupas, sobre políticos”, essas mudanças rendem conversas prolongadas, que podem ser regadas (mesmo à distância, via áudios e calls) a vinhos e gins ou caminhadas longas. Tenho amigas da área da saúde, da área do direito, é natural que sigamos leituras diferentes e que as vezes falte paciência para a gente sintonizar o rádio. Também é natural que outras amigas apareçam, com os pensamentos alinhados ao seu novo eu, ao seu novo mundo de descobertas. Mas de jeito nenhum caio na cilada de abandonar os que me conhecem de outra década, quando eu era bem mais chata do que sou hoje.

Só acho que as pessoas não são descartáveis e olho com desconfiança para quem age como se fossem, para quem troca de amigos como quem troca de capinha de celular.

 

 

Vanessa Brandão

Vanessa Brandão é jornalista amazônida. Manauara de nascimento, criada em Roraima, é indígena descendente do povo Wapichana. Doutoranda em Estudos Literários pela Unesp – SP, mestra em Letras pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), pesquisando sobre arte e literatura indígena. Tem especialização em Assessoria de Imprensa e Novas Tecnologias da Comunicação e em Artes Visuais, Cultura e Criação. Publicou seu primeiro livro em 2022, com o título ‘Entre Pinheiros e Caimbés’. Escreve poesias, crônicas e contos e trabalha na produção de um romance. Atualmente mora parte do tempo em Lódz, na Polônia e parte em Boa Vista, Roraima, no Brasil

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Vanessa Brandão

One thought on “#31 Eu não tenho amigas perfeitas

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    As chamadas pessoas tóxicas, frequentemente, são pessoas q estão doentes da alma e merecem mais paciência e carinho, d quem tiver estrutura, do q excesso de críticas e isolamento.

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