Contos

Envelope

Clóvis de Hamburgo tinha 78 anos bem vividos e 12 netos. Sua preferida era Mirela, a menina de olhos intensos e cabelos de fogo, como ele chamava. Ela falava pelos cotovelos e fazia-o rir a cada meia hora pelo menos. Para quem sustentou personalidade austera de poucos risos uma vida inteira, a presença de Mirela era como raio de sol após sete dias nublados.

Naquele domingo após o alvoroçado almoço em família, no grande casarão do bairro São Francisco, Clóvis retirou-se para o quarto a fim de se arrumar. Estava ansioso e tomaria sorvete mais cedo. Não eram nem três da tarde quando aprumou a bengala de cedro no chão e levantou-se. Pediu ajuda para vestir-se. Avisou Dirce para que chamasse a neta Mirela, pois o sorvete de domingo seria mais cedo e gostaria que somente ela viesse. Não queria o barulho de muitos netinhos, apesar de ser também animador, aqueles dias não estavam sendo fáceis.

Mirela entrara na casa com os pés sujos de barro vermelho, do único canto do quintal onde não havia grama. “Vamos só eu e você vô? Mas você deixa eu pedir um sorvete de duas bolas então?”, disse a menina. “Sim, sim! Vá lavar os pés que já vou lhe esperar no carro”, disse Clóvis, passando em seguida pela ampla sala com cheiro de madeira rumo ao veículo. Antes, passou em frente ao aparador e pegou o envelope branco, colocando-o no bolso do casaco, com mãos trêmulas.

Já dentro do carro, aguardou a neta por dois minutos em profundo silêncio, interrompido por Dirce. “O senhor vai na Piknick, seu Clóvis?”. “Sim, minha filha”, respondeu para a motorista e também governanta da casa. Mirela entrou no carro com a testa suada e cabelos esvoaçantes, empurrando a perna do avô. “Vovô, sabe aquele gato branco que lhe falei? A minha mãe me deixou ficar com ele, mas com uma condição: que eu passasse em todas as provas com nota 8. Eu fiquei me sentindo desafiada e aceitei, mas agora não sei se consigo, porque vem outras coisas na cabeça na hora em que estou na escola e nem sempre quero prestar atenção nas aulas. E o gato faz cocô muito fedido, o senhor não vai acreditar no quanto é difícil limpar um cocô de gato, acho que por isso você só gosta de cachorros não é? Por quê não me avisou sobre isso?”. Clóvis seguia com um meio sorriso no rosto, menos prestando atenção no conteúdo da fala da neta e mais no modo vívido como ela se expressava.

Taciturno, descera do carro vagarosamente, sentou-se com a neta na mesma mesa dos últimos dois anos. Observava a menina que havia crescido, sua personalidade incisiva, de uma doce arrogância juvenil. Tinha 10 anos e muitas certezas para a pouca idade. Como seria aos 20, indagara-se. Colocou a mão no bolso e retirou o envelope enquanto Mirela pedia o sorvete preferido: cupuaçu com chocolate. Nem sempre o avô a deixava comer dois sabores, comedido como sempre foi, achava todo excesso perigoso, porém, naquela tarde tudo extrapolava. Seu amor pela neta, a luz do fim de tarde, o medo do que estava por vir e a extrema necessidade em não transparecer tudo aquilo diante do único ser com quem se sentia verdadeiramente conectado.

Clóvis e Mirela conversaram as amenidades de sempre, ela sempre falando mais, ele sempre assentindo com a cabeça e fazendo parcas perguntas sobre como a menina se saíra de cada situação conflitante da escola. Depois do sorvete, geralmente iam para casa, de modo que ninguém se incomodasse com a ausência demorada da neta preferida, porém naquela tarde, Clóvis pediu, depois do sorvete, dois refrigerantes, mais com o intuito de alongar aquele momento.

Ao ver os dois copos cheios, transbordou, pegou o envelope, abriu, leu por um instante, suspirou e seguiu calado. “O que é isso vô?” Quis saber a menina. “Um ato de liberdade, minha filha. Me escute que preciso lhe dizer algumas coisas tá bem?”, disse sereno. “Você não pode deixar nunca que um homem a machuque, nem fisicamente e nem psicologicamente entendeu? Mesmo que você o ame, o amor não pode suportar tudo, isso é balela, não se destrua por ninguém, nem por manter um ideal de família.” Mirela ficara de repente circunspecta. As palavras do avô nunca tinham sido tantas e tão enfáticas. Ela não era boba. Não queria olhar nos olhos dele, mirava o vazio, pois não estava preparada para nenhuma despedida. “Sinta-se privilegiada por ter uma boa educação e faça algo de bom ao mundo com isso, use sua inteligência para fazer o bem, mas não queira ser para sempre uma heroína, isso também é balela, não existem heróis, tudo bem?”, indagou Clóvis, relaxando os ombros. “Sim vovô”.

Voltaram para casa silenciosos. Mirela segurou nas mãos do avô, recostou a cabeça em seu braço e pensava em cada palavra que ele havia dito, tentando decifrar o significado do que tinha dito. Pareciam lições importantes, mas não estava madura suficiente para compreender tudo. Clóvis desceu do carro, seguiu para a sala, deixando o envelope sobre o mesmo aparador, só que aberto, como quem quer dividir verdades difíceis de serem administradas. No papel branco, lia-se entre outras coisas técnicas, as palavras positivo e metástase. Ele sentou-se na poltrona de couro do velho escritório, pegou seu livro predileto e pôs-se a ler e esperar, somente. Mirela correu para a mãe, abraçou-a ternamente, pegou em sua mão, levou até a sala e apontou para o envelope entreaberto, dizendo: algo importante sobre o vovô.

Vanessa Brandão

Vanessa Brandão é jornalista amazônida. Manauara de nascimento, criada em Roraima, é indígena descendente do povo Wapichana. Doutoranda em Estudos Literários pela Unesp – SP, mestra em Letras pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), pesquisando sobre arte e literatura indígena. Tem especialização em Assessoria de Imprensa e Novas Tecnologias da Comunicação e em Artes Visuais, Cultura e Criação. Publicou seu primeiro livro em 2022, com o título ‘Entre Pinheiros e Caimbés’. Escreve poesias, crônicas e contos e trabalha na produção de um romance. Atualmente mora parte do tempo em Lódz, na Polônia e parte em Boa Vista, Roraima, no Brasil

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