Crônicas

Foto de bumbum e suas pequenas paixões importam


Lódz, Polônia

9 de fevereiro de 2020. Fim do inverno

Eu curto quem posta foto mostrando o bumbum na rede social em plena quarta-feira, no horário comercial. É um ato de transgressão, um rasgo no chato conservadorismo, um grito de liberdade. Gosto inclusive quando o bumbum é fora de forma, com celulites e estrias. Gosto de bumbum dentro das grades do padrão publicitário, pela beleza pura e simples, mas gosto mais daquele que andava escondido por estar justamente fora dos padrões inoportunos. Esses corpos que se libertam e que se curtem do jeito que são, passam a ser uma homenagem ao que é comum e normal. Acostumam nossos olhos a outro tipo de beleza.

A mulher que postou a foto, por um momento não se importou com o homem tarado que iria se masturbar vendo a imagem dela (a gente passa a vida toda com medo de psicopatas tarados), não se importou com as amigas do trabalho que poderiam rir e debochar, nem com o print que poderiam tirar para falar mal ou bem. Ela simplesmente se achou bonita e quis compartilhar, quis dizer que está com a autoestima lá no céu e é muito feliz assim. E te planta a pergunta: por que você também não está feliz do jeito que você é? Quem disse que não pode?

Gosto das garotas doidas que vivem seus prazeres secretos, e das mães que insistem em doar seu tempo para um pequeno passatempo, mesmo com a casa caindo, com as roupas entulhadas, com o filho enchendo o saco. Gosto porque nos faz bem e, consequentemente, faz bem ao mundo. Gosto ainda porque nós, mulheres, passamos a vida confundindo o nós, nosso eu, nossos impulsos e ideias criativas que vem junto e colorindo a alma, com o que é determinado pelos outros, as regras morais e sociais, o machismo embutido em todas as limitações, todos os “mas você é mulher”.

O normal é doar-se para atender o próximo. A mãe, os irmãos, os filhos, as amigas, o trabalho, a casa, o marido e as nossas pequenas e grandes coisas são sempre minimizadas, colocadas em um cantinho para quando sobrar tempo, e esse tempo dificilmente sobra, mesmo para aquelas que trabalham apenas em casa, afinal, trabalho de casa nunca acaba e é a melhor maneira de paralisar uma mulher (tentando lembrar quem disse essa frase).

A mulher sarada, que não fica um dia sem ir à academia, que se organiza para comer direitinho, mata todo dia alguns leões para poder priorizar-se e, com certeza, já foi chamada de egoísta e foi malhar puta da vida por isso. A que não tem esse foco, pois não aguenta conciliar filhos, casa, marido e ainda uma atividade física, também é cobrada, chamada muito provavelmente de desleixada e outros adjetivos nada corteses.

Qualquer lazer, qualquer hobbie feminino, tudo que queiramos priorizar além daquilo que a sociedade “manda” é taxado de frívolo, perda de tempo, vira piada. Eles dizem “coisa de mulherzinha”. Observe quanto de pejorativo tem nisso. Muitas cansam, deixam de lado as pequenas paixões, seguem o bonde da vida conforme manda o figurino social e lá na frente adoecem, não sabendo o porquê. Adoecemos de vida sufocada, de tanto não ser o que queremos, de tanto cortar nossa intuição que tanto clama por nos guiar, não querendo deixar que sejamos só o que esperam de nós.

Essa questão está muito presente nas redes sociais da atualidade, mas muitas garotas, mulheres e senhoras ainda não se ligaram, se recusam a virar a chave e ver, se ver. Por esse motivo, eu desejo profundamente que cada mulher, tenha ela uma vagina ou não, se organize direitinho, ou se desorganize mesmo, talvez seja até melhor, para ver seus filmes de comédia romântica com brigadeiro, para pintar florezinhas em papel de carta, fazer chaveirinho para dar de presente, colecionar fotos de makes e tatuagens na pasta do Pinterest, ler seus livros de pornô romântico, plantar plantinhas, fazer ioga, meditar, nadar nua em um igarapé, produzir uma fantasia de carnaval, republicar posts engajados, lutar por uma causa, editar fotos e postar com frases impactantes (só coloca o nome do autor da frase, please), dançar zumba, dançar na sala, no quarto, aprender quadradinho de oito ou de 12, sei lá, cantar, colecionar cristais ou torcer por uma miss na TV. Faça por você o que você gosta, e deixa o mundo esperar um pouco e não acredite nunca mais que suas coisas são frívolas.

Há tempos eu postei um pequeno texto no Facebook sobre minha insatisfação com o preço da energia elétrica (quando eu ainda morava no Brasil), com o preço de tudo e com a impossibilidade de poder planejar uma viagem em família como eu gostaria naquele momento. Um amigo jornalista de longa data debochou, ironizando o meu problema “classe média”, enquanto tinha saído naquela semana uma matéria falando sobre o aumento no número de famílias em situação de extrema pobreza no país. 

A crítica não só foi injusta, pois sou uma pessoa sensível às causas sociais e busco fazer minha parte nesse contexto de desigualdade em que vivemos, como foi machista, visto que na semana seguinte o mesmo colega jornalista estava lá falando de futebol como se fosse o debate sobre a polarização política no mundo. Entende que a sociedade patriarcal sempre nos manipulou? A crítica sempre vai chegar, mesmo que tenhamos a melhor das intenções, mesmo que não estejamos fazendo mal a ninguém. Parece ser irresistível dizer a uma mulher o que ela tem de fazer e pensar, e nós, mulheres, também reproduzimos esse comportamento. Por isso, eu respeito tanto os nudes na internet, as que viajam sozinhas, as que fazem trabalhos manuais, as que são engajadas e militam em qualquer área. Sigamos, garotas, quebrando convenções desnecessárias à nossa liberdade e ao florescimento dos nossos talentos silenciados. 

Vanessa Brandão

Vanessa Brandão é jornalista amazônida. Manauara de nascimento, criada em Roraima, é indígena descendente do povo Wapichana. Doutoranda em Estudos Literários pela Unesp – SP, mestra em Letras pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), pesquisando sobre arte e literatura indígena. Tem especialização em Assessoria de Imprensa e Novas Tecnologias da Comunicação e em Artes Visuais, Cultura e Criação. Publicou seu primeiro livro em 2022, com o título ‘Entre Pinheiros e Caimbés’. Escreve poesias, crônicas e contos e trabalha na produção de um romance. Atualmente mora parte do tempo em Lódz, na Polônia e parte em Boa Vista, Roraima, no Brasil

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