Crônicas

Reencontro ancestral da vida para a academia

É preciso dizer primeiramente que escrevo de entrelugares de apagamento e subalternização. Da periferia da periferia e isso precisa ser lembrado, não para suscitar consternação, mas para explicar uma possível atitude defensiva desenvolvida ao longo da vida principalmente ao lidar com indivíduos fora de nosso território de origem. Sou amazônida, uma definição de múltiplas faces, a qual apreendo principalmente como alguém que nasceu na Amazônia legal, e se identifica/valoriza as culturas e biomas naturais da Amazônia brasileira. Meu lugar de fala é o de quem viveu com identidade emprestada e influenciada pela globalização, pelo braço colonizador euroamericano, sem nunca ter deixado de viver na prática, ou seja, nos sabores, nos pés na terra, no corpo que busca por água e ama árvores, a vida amazônica.    

Meu pai nasceu na ilha Tupinambarana, pseudónimo de Parintins, a ilha do Boi Bumbá Garantido e Caprichoso, lugar banhado pelo rio Amazonas, onde acontece o grandioso festival folclórico de Parintins, que é patrimônio cultural do Brasil, segundo o Iphan. Seu Tenilson Brandão meu saudoso pai, que veio a falecer aos 60 anos, migrou para Roraima ainda jovem e conheceu dona Luiza, minha mãe, com quem teve quatro filhos. Ela, roraimense, filha da terra, vinda de uma longa mistura de nordestinos com indígenas. Neta de uma Wapichana. Essa relação de origem entre Amazonas e Roraima, negros e indígenas é meu entrelugar de existência e resistência.

Por um acaso da vida, eu nasci no Amazonas, em Manaus, numa tentativa do meu pai de retornar ao seu estado de origem, mas com 40 dias de vida voltamos todos novamente para Roraima, terra na qual cresci. Retornei à Manaus aos 20 anos para fazer faculdade de Comunicação Social/Jornalismo. Tão logo peguei em mãos meu diploma, retornei à terra de Makunaima, meu Roraima. Emendei logo duas pós-graduações ao mesmo tempo. Trabalhei em Rádio, TV, jornal impresso, assessoria de comunicação, cerimonial e depois de inúmeras experiências vividas, iniciei a jornada de um mestrado em Letras, na Universidade Federal de Roraima, pesquisando sobre o saudoso artista Macuxi Jaider Esbell. Foi através do primeiro livro escrito por ele, intitulado Terreiro de Makunaima, que reencontrei minha identidade ancestral indígena, ou minhas identidades ancestrais, por isso o entrelugar mencionado no início desse texto.

Tenho um avô negro, um avô caboclo, bisavó nordestina do Rio Grande do Norte, bisavós indígenas do Norte, de etnias distintas. Essa mistura se homogeneíza ao longo dos anos e sem registros históricos sobre os povos que nos compõem, geralmente não pensamos para além de nossas raízes imediatas. Mas como nos diz Santo Agostinho, algo permanece em nossos palácios da memória, ventre da alma, ao longo de nossas existências e nos leva instintivamente a buscar, admirar, ver e se identificar com o que nos compõe, mesma que pareça inédita aquela primeira experiência visual e auditiva, que geralmente surge a partir da arte, essa porta aberta para nossas reminiscências.       

Mas vamos abrir espaço para uma contextualização maior: a subalternização da cultura indígena em Roraima, que ironicamente é o estado com maior população indígena do Brasil, me impediu de ter traçada uma linha de ancestralidade mais clara, possibilitando o reencontro com o passado de forma mais certeira. Só me restou uma única foto da carteira de identidade de minha bisavó Cecília, uma wapixana nascida onde hoje se localiza o município do Amajari, retirada da comunidade e inserida como trabalhadora em uma das fazendas no extremo-norte, a qual nunca saberei o nome. Restou-me na cor da pele, nos traços fenotípicos, a tez afro-indígena. Simplificando: minha cara de índia, morena, caboca, parda, imensa mistura.   

Face esta, que, desde a adolescência, em qualquer viagem para o eixo sul ou sudeste do Brasil me possibilitava experiências boas e ruins, nas quais eu era apontada como “índia”. Em Roraima, no entanto, essa identificação ficava perdida, escondida, talvez por um silencioso preconceito disfarçado em gestos e palavras em tom de brincadeira, mas que encobriam nada mais que o apagamento.

Os indígenas que saem das comunidades em busca de uma vida na cidade são chamados pelo não-indígena de ‘caboco’ ou ‘caboca’. Historicamente explorados, ocupando posições de subempregos, tendo sua cultura e modo de vida menosprezados, os cabocos e cabocas roraimenses se distanciavam cada vez mais da identidade indígena. Afirmar-se indígena ainda não é possível para muitos, por alienação, por falta de consciência de si, mesmo que ser indígena permaneça evidente na cor da pele, no fenótipo, na intuição.

Mas na contracorrente dos que migraram para as cidades, o Movimento Indígena em Roraima se organizou desde os anos de 1970, por meio da criação do Conselho Indígena de Roraima, instituição base para o surgimento de muitas outras, que representam etnias distintas, comunidades distintas, numa grande teia muito bem estruturada. O movimento indígena organizado contribuiu enormemente para que a identidade de tantas etnias não se perdesse, para que as 32 terras indígenas em Roraima fossem demarcadas e a partir delas, nelas, as comunidades fossem preservadas, o modo de vida indígena apesar de afetado pelo colonizador desde a chegada dos primeiros estrangeiros, espanhóis, holandeses e portugueses e com todo aparato opressor, entre religião e uso da força, apesar deles, a cultura desses povos resistiu e seguiu se fortalecendo diariamente, mantendo sua identidade/cultura preservada. Alguns desses indígenas saem de suas comunidades para buscar outro tipo de conhecimento, se embrenham no mundo dos brancos e voltam ainda mais potentes.

Meu reencontro com a identidade indígena nasceu a partir da arte, especificamente a partir da literatura escrita por um desses indígenas que vivenciou o mundo dos brancos para logo em seguida poder potencializar sua manifestação indígena ancestral. Como já disse, Jaider Esbell iniciou sua carreira a partir da publicação do livro Terreiro de Makunaima (2010) . A obra chegou em minhas mãos quando era editora de cultura no jornal Folha de Boa Vista e fazia resenhas literárias numa coluna de variedades assinada por mim. A leitura daquelas páginas me fez recordar do meu ser indígena de outras existências, das minhas ancestrais, especialmente, das sábias anciãs que deixaram seus ensinamentos nas mãos de minhas avós, tias e de minha mãe, dos ensinamentos que resistiram a uma vida toda permeada pela colonialidade.

A dissertação do mestrado em Letras, finalizado em 2019, pela UFRR, seria então toda sobre Jaider Esbell e sua relação com Makunaima, o criador e transformador das coisas todas do circum-Roraima, região etnográfica inserida da imensa Amazônia transfronteiras, aos pés do grande Monte Roraima, casa lar de Makunaima, de quem ele dizia ser neto. Foi por meio de Jaider que Meriná me foi apresentada. Ela era sua mãe de alma, como o próprio fazia questão de frisar. Meriná era o nome indígena da anciã Macuxi Bernaldina José Pedro, mestra dos saberes ancestrais dos lavrados de Roraima. Devota de Nossa Senhora e filha de Makunaima, mesmo tendo sido em parte convertida ao cristianismo, devido à presença forte da igreja católica em terras indígenas, ela nunca abriu mão de suas manifestações de fé ancestral e cantou seus cantos de cura até a morte prematura, por Covid-19 em junho de 2020. Preservava a língua Macuxi, sua língua mãe e pouco falava em português, mas sua linguagem artística por meio dos cantos e danças indígenas era universal, dialogava diretamente com as reminiscências indígenas de quem a ouvisse e tivesse em si um elo perdido com o passado, nessa ou em outras vidas. Foi assim que me vi comovida por Mariná desde o primeiro encontro ainda na Galeria de Arte Indígena Contemporânea de Jaider Esbell, numa tarde quente na cidade de Boa Vista no ano de 2018.

Tive a oportunidade de comer uma Damurida (comida típica indígena, feita a base de peixe cozido, pimentas diversas) feita por suas mãos e ouvir suas histórias meio contadas, meio cantadas, misturando palavras em português com a língua macuxi, com direito a mímicas e muitas risadas. Com Jaider Esbell ela pôde ir a São Paulo e seguir até a Europa, onde conheceu o Papa Francisco e para ele entregou carta pedindo apoio no combate ao Garimpo ilegal em terras indígenas e a preservação da mãe natureza. Estava em grande momento de atividade artística e política quando veio a pandemia e invadiu todos os cantos do planeta, inclusive comunidades indígenas.

Mãe de seis filhos, Meriná foi sepultada na capital Boa Vista. Os familiares aguardam até o momento autorização para poder levar seus restos mortais para serem enterrados conforme as tradições Macuxi, na terra onde ela viveu, a comunidade do Maturuca, na Raposa Serra do Sol.  

De minha parte o melhor que pude fazer para tentar reunir a sapiência dessa mestra dos saberes ancestrais foi estudar sua obra, sua performance cultural e registrar sua vida em forma de tese de doutorado, tarefa na qual me encontro desde 2021, ano 2 da pandemia. O que ela tinha a dizer ao mundo? Que tipo de literatura ela fazia? Quando morre uma anciã indígena, o que morre com ela? De que modo podemos levar a conhecimento do grande público o legado dessas pessoas? Como a literatura oral indígena, a chamada ‘oralitura’ deveria estar inserida no cânone da literatura brasileira? Como a poética oral de intérpretes como Vó Bernaldina deve ser lida nos ambientes escolares? Enfim, são perguntas sobre as quais me debruço e aprendo diariamente, lançando mão dos que vieram antes de mim e já escreveram seus saberes, seja na academia ou em livros e no ambiente virtual, hoje tão plural e rico de conhecimento.

Vivo um momento de escuta, leituras e pesquisa constante para compreender arte e vida, conhecimento e toda retórica dos povos ancestrais. A Unesp, instituição paulista que me recebeu como aluna no doutorado em Estudos Literários, me brindou com uma orientadora como Elizabete Sanches Rocha, totalmente aberta as ideias decoloniais, sensível aos saberes dos povos originais. Mais uma mulher que parece ter sido colocada nessa peça chamada vida, para abrir caminhos e ajudar na geração dos frutos de uma existência cultural mais plural e menos excludente para o país. Mais que isso, do meu entrelugar de raças, sinto-me cada dia mais presenteada e pertencente, pronta para seguir defendendo por meio da pesquisa científica, a enorme contribuição da ancestralidade indígena para o futuro do planeta.

Vanessa Brandão

Vanessa Brandão é jornalista amazônida. Manauara de nascimento, criada em Roraima, é indígena descendente do povo Wapichana. Doutoranda em Estudos Literários pela Unesp – SP, mestra em Letras pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), pesquisando sobre arte e literatura indígena. Tem especialização em Assessoria de Imprensa e Novas Tecnologias da Comunicação e em Artes Visuais, Cultura e Criação. Publicou seu primeiro livro em 2022, com o título ‘Entre Pinheiros e Caimbés’. Escreve poesias, crônicas e contos e trabalha na produção de um romance. Atualmente mora parte do tempo em Lódz, na Polônia e parte em Boa Vista, Roraima, no Brasil

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