CrônicasVivendo na Polônia

Novembro já não será tão doce

Ilustração: Braziljournal

Dia 2 de novembro recebi notícia devastadora. Uma de minhas grandes referências artísticas, de coragem, estratégia, ousadia e amor pela vida escolheu partir, encerrar sua missão nesse plano, no momento em que todos os holofotes estavam voltados para ele. Entrei na maré dos porquês, angustiada, conversei com amigas e amigos que igualmente não sabiam as respostas.

No dia 3 meu tio Sebastião me pede para escrever um texto em homenagem a Jaider, de modo que seja lido no evento de lançamento do livro Recado ao Humanos, segundo livro de tio Sabá, já previamente agendado para o dia 6. Em meio a lagrimas escrevi algumas palavras doloridas e enviei para minha irmã, Cristiane, que fez a leitura na ocasião do evento. Enquanto isso o corpo de Jaider era transportado para Roraima. Daiara Tucano, atual companheira de Esbell foi a Roraima. O corpo foi velado no Palácio da Cultura e o que parecia um velório tradicional cristão num primeiro momento, na parte detrás do Palácio da Cultura os amigos indígenas, artistas, intelectuais, faziam tudo o que ele, o próprio Jaider, já tinha pedido em texto publicado em seu livro Tardes de agosto, manhãs de setembro e noites de outubro (2013).

Acenderam uma fogueira, incensos, flores, tomaram pajuarú, queimaram maruai e outros ritos simbólicos dos povos do circum-Roraima. Eu aqui na Polônia, eles todos em Boa Vista, Roraima. A distância física só potencializa as coisas, porque um de nossos sentidos mais importantes, o tato, fica impedido de exercer seu papel e trocar afetos por meio de abraços sinceros, majorando assim outras sensibilidades.

Fui convidada ainda a dar palestra sobre a vida de Esbell aos alunos do IFRR no dia 10, o que me fez revirar as pastas e arquivos digitais em meu computador em busca de uma forma de resumir a grandiosidade dessa carreira em apenas alguns slides e 60 minutos de aula. Revi a Vanessa iniciando enquanto pesquisadora, lá em 2017, conversando cm seu possível sujeito de pesquisa na Galeria do Sesc em Roraima, aquela pessoa agitada, de fala rápida, rosto sério, exercendo uma liderança nata, um magnetismo só encontrado nos que tem missão importante nessa terra.

Jaider foi enterrado dia 5 de novembro, minha irmã leu o texto dia 6, eu fiz a palestra dia 10 e agora preciso deixá-lo ir por alguns dias. Fiquei noites sem dormir pensando, conjecturando, sentindo-me cobrada por não ter estado mais presente, por não ter falado mais com ele, como se isso fosse importante. Não era. Jaider tinha centenas de amigos, fãs, parceiros, gente de todo o país em constante contato e ninguém foi capaz de entendê-lo plenamente. Ficaremos sem resposta e o que nos cabe é viver sua arte, orgulhar-se dela e lembrar com carinho da toda ousadia emanada por ele. Novembro já não será tão doce, terá gosto de saudade por longos anos.

Segue o texto de despedida:

Ontem foi dia do último encontro físico com a terra para nosso grande amigo das artes Jaider Esbell, mas em verdade , estrelas não são realmente enterradas. Sua alma já vai longe, junto a outros encantados, aconchegado pelo abraço e sorriso de vó Bernaldina, na morada de Makunaima. Por aqui ele deixou sobretudo um exemplo vivo de coragem e fé na arte, essa linguagem transcendental que liga mundo físico e o cosmo. Coragem para transformar a ancestralidade Macuxi em objeto de desejo, dando voltas na colonialidade do poder, fazendo-os rendidos às belezas dos povos originários.

Jaider Esbell se fez presente também na academia, publicando ensaios que repercutem até hoje nos formais boletins acadêmicos. Produziu dois livros, Terreiro de Makunaima e Tardes de Agosto, Manhãs de Setembro e Noites de Outubro e deixou muitos escritos em seu site, nas redes sociais, nas páginas de colaboradores, numa desobediência epistémica sistemática, quebrando qualquer protocolo, com estratégia e pressa, uma pressa de cometa, como se tudo precisasse ser feito e entregue com urgência. Suas pérolas de filosofia selvagem ainda permearão nosso imaginário por longos anos, o artista permanecerá entre nós a cada olhar admirado diante de suas telas e a cada questão levantada diante de seus escritos.

Neste dia tão especial para Sebastião Nascimento, alguém que também milita na arte da palavra, agradecemos por abrir espaço para esta homenagem a ele, que tão bem acolhia a todos e todas em suas manifestações artísticas. Agora podem chamar Jaider Esbell de estrela.  Nietzsche já nos dizia “torna-te quem tu és?”.  Ele assim o fez e decidiu partir, sem nos dar chance de dizer adeus, nos deixando apenas sua história de entusiasmo e amor pela ancestralidade e muitos presentes para a alma.

Vanessa Brandão

Vanessa Brandão é jornalista amazônida. Manauara de nascimento, criada em Roraima, é indígena descendente do povo Wapichana. Doutoranda em Estudos Literários pela Unesp – SP, mestra em Letras pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), pesquisando sobre arte e literatura indígena. Tem especialização em Assessoria de Imprensa e Novas Tecnologias da Comunicação e em Artes Visuais, Cultura e Criação. Publicou seu primeiro livro em 2022, com o título ‘Entre Pinheiros e Caimbés’. Escreve poesias, crônicas e contos e trabalha na produção de um romance. Atualmente mora parte do tempo em Lódz, na Polônia e parte em Boa Vista, Roraima, no Brasil

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