Vivendo na Polônia

Perrengues, alegrias e neve intensa na vida de três macuxis no leste Europeu

Retornamos à Polônia no dia 29 de janeiro de 2021 e só agora consegui escrever sobre nosso retorno ao velho continente, depois de uma temporada de cinco meses no Brasil. Feliz por não esbarrar na Covid-19 depois de passar por quatro aeroportos, também respiro aliviada por encontrar um novo apartamento, ter conseguido controlar uma crise de rosácea daquelas de chorar, arrancado o primeiro dente do Luigi e ter sido aprovada no doutorado de Estudos Literários pela Unesp (Vivaaa!), tudo na mesma semana.

Pegamos o último voo do Brasil para a Europa, antes de mais um fechamento por conta da nova variante do Coronavírus. No dia seguinte a Alemanha se fechava para todas as zonas de risco. Reinaldo precisava estar na Polônia para fazer as provas presenciais da universidade ou perderia o semestre de estudos.

A viagem até aqui, como sempre, foi exaustiva. Saímos de Curitiba 18h e chegamos em Lódz, na Polonia 28 horas depois, fazendo Curitiba/São Paulo/Frankfurt/Varsóvia/Lódz. Não aconselho ninguém a fazer essa viagem “diretão” assim, principalmente se estiver com criança pequena. O menos cansativo sem dúvida é fazer a travessia do Atlântico e dormir no primeiro país em que você vai descer. Atualmente temos rotas por Portugal, Holanda, Alemanha, Inglaterra, Espanha e os voos duram de 10 a 12 horas. Desça, pegue um transporte e se jogue num hotel com cama macia. A não ser que você seja daqueles seres iluminados que entram no avião e dormem por 10 horas seguidas. Eu não consigo achar posição confortável e nem tenho dinheiro para viajar de classe executiva, logo, reclamo, fico arrasada, com cara de quem vai desmaiar a qualquer momento. Luigi dorme como um príncipe e Reinaldo também dormiria se não precisasse me dar cobertura. Em verdade eu fico à beira de um ataque de nervos e não deixo tudo se transformar em desespero na base de muita meditação e respirações diversas. Dramática, mas um drama real, sinto um mal estar generalizado. Não é exatamente claustrofobia dos aviões lotados e lugares apertados ou medo de morrer em caso de acidente, é algo silencioso e que me incomoda muito. Estou tentando compreender e vencer essa dificuldade.

De Varsóvia pegamos um transfer direto para Lódz. É um percurso de aproximadamente 1h30 e no caminho já pude ver a neve cair suavemente sobre as cidades. Reservamos no Airbnb um apartamento para ficar os primeiros dias em Lodz até encontrarmos apartamento para nos fixar. Eu lembro de já ter encarado com mais leveza dormir em lugares diferentes, mas não sei se por conta do horário (já eram 2h da madrugada) ou se pela viagem de 28 horas, mas fiquei aflitíssima ao chegar no “apertamento”. O lugarzinho por foto, era charmoso, com decoração arrojada, moderna e ao mesmo tempo, clássica. Os poloneses são os reis do design e sempre encontram maneiras de deixar lugares pequenos, bonitos e práticos com móveis originais e lúdicos.

Porém, meus caros, fotos enganam, esteja ciente disso e antes de alugar verifique os detalhes, os comentários e afins. O ap ficava no quinto andar de um prédio histórico reformado, como tantos por aqui. Era um sótão com teto em declive, metade dele tão baixo que nós tínhamos que nos curvar para poder andar. Luigi achou tudo lindo e Rei se aperreava do outro lado preocupado com a minha irritação e cara de desespero. Estava frio, muito frio e nós ainda precisávamos tomar banho e lavar cabelo de madrugada, por medo de Covid-19 em voo tão demorado. A rosácea já fazia meu rosto arder e coçar, como reflexo vivo da perda de sono, ansiedade, emoções afloradas.

Sei que ficamos uma semana nesse apartamento, que apesar do problema do teto baixo, era bastante funcional e bem localizado, ficando na mesma rua em que morávamos meses atrás, antes de ir passar a temporada no Brasil.Consegui passear com Luigi, curtir a neve com ele, fazer registros mágicos de lugares que já tínhamos aproveitado na primavera passada. Reinaldo tentava estudar, fazer provas presenciais e nos intervalos procurávamos apartamento para morar. Visitamos três lugares, dois deles, apesar do preço bom, em torno de 2.600 zlotys, tinham aquecimento a gás, o que nos dá certo medo por conta de possíveis explosões e possibilidade de não esquentar o suficiente nesse frio tão intenso. O outro foi paixão à primeira vista, mas os agentes adiaram para segunda-feira um possível fechamento do negócio.

Ou seja, teríamos que alugar outro Airbnb. O sótão claustrofóbico já não estava disponível naquele período. Fecha mala tudo de novo e justo no dia mais frio do inverno, com sensação térmica de – 18 graus. Com restaurantes e shoppings fechados por causa da pandemia, não tínhamos para onde ir em um dia gelado, das 11h às 15h, horário em que se deve sair de um Airbnb e fazer chekin em outro. Ainda bem que a comunidade brasileira em Lódz se ajuda, com aquela simpatia latina tão preciosa. Um amigo, o Rodrigo, nos indicou uma amiga dele, a Raýssa, para deixarmos nossas malas. Ela mora na mesma rua em que estávamos. Sorte. Fomos andando, eu, Rei e Luigi, por duas quadras com três malas grandes e uma pequena. Raýssa foi um amor, chegou na Polônia há três meses. Da casa dela pegamos um bondinho e fomos para a casa da Thais e do Vitor, casal carioca, pais do Henrique, que já moram aqui há dois anos. Frio de rachar até chegar lá, com direito a passar por um bosque de chão congelado e tudo. Comemos porquinho assado com feijão, arroz e farofa. Valeu, Thaiiis!! Jesus, como amo comida brasileira. Luigi brincou com Henrique o dia inteiro e eu amo essa interação entre crianças. Não vou mentir: é algo que sinto muita saudade  de BV, dos amiguinhos do Luigi, Lucas, Theo, a prima Letícia, Gabriel, Matheus.

No fim da tarde fomos ainda pegar nossas malas na Raýssa e partimos para o segundo Airbnb, e adivinhem, meus amigos? As fotos enganaram novamente. Obrigada, de nada. “Apertamento” lindo, porém, micro. Claustrofobia total com Luigi pulando na cama, malas por toda parte, rosto ardendo e tome neve lá fora. Até para comprar água estava difícil, foi o jeito tomar direto da pia. No dia seguinte Reinaldo saiu de casa para fazer uma prova importante, embaixo da pior nevasca dos últimos 15 anos e precisava estar na reunião com os agentes para fechar negócio com os donos do apartamento. A cidade estava um tormento, com trens atrasados, carros rodopiando na neve, gente confusa. Ele saiu com duas horas de antecedência e ainda perdeu 20 minutos do tempo da prova.

A tarde foi, sozinho, tentar fechar o negócio e eu tinha a missão de ir com Luigi ao supermercado, depois da nevasca. Os dias terminam cedo nesse período do ano. Não eram nem 17h e a noite já caia quando saímos do micro Airbnb para comprar algo para comer e beber. Luigi é um guri obediente, mas diante da neve fofa, brilhando feito cristal sob a luz dos postes sentiu-se livre. Não adiantava meus apelos: ele dava um jeito de escapar, encher as mãozinhas de neve e jogar para o alto, em mim, em si.

Estávamos no supermercado quando finalmente Reinaldo ligou e disse que o apartamento estava liberado, contrato assinado, poderíamos pegar nossas malas e já dormir na casa nova. Arrumamos tudo, fechamos as malas novamente, colocamos no táxi e descemos no frio cortante diante do prédio estilo art nouveau, de 1920.

Finalmente casa nova

Luigi achou tudo “maravilhoso”. Inauguramos a casa comemorando a retirada do primeiro dentinho dele , sem choro algum. O novo lar tem pouco mais de 66 metros quadrados, mas fizeram o trabalho de moveis planejamos tão bem feito, que deu para guardar tudo e ainda tem lugar sobrando, de tanta portinha e armário escondido. Alegrei-me também com a coifa gigante, minha aliada para evitar aquela cena bizarra de apartamento tomado pela fumaça.

Algo muito bacana dos apartamentos para aluguel aqui em Lódz é o fato de já virem mobiliados e com tudo o que você precisa para entrar e morar. Esse foi elaborado com todo cuidado e tem de taças de cristal a livro de culinária, passando por roupas de cama, panos de prato, enfim, todo material de cozinha mesa e banho. Um alívio já que montar uma casa em meio a nevascas históricas no continente não seria nada legal.

Indo para a segunda semana na  nova casa, terminei de abrir caixas e malas de roupas, livros, brinquedos e afins, que estavam num depósito aqui na Polônia enquanto estávamos no Brasil. Sim, aqui tem muito disso. Afinal, deixar um apartamento por aqui custa caro. Um depósito para guardar dois patinetes, nove caixas e quatro malas, custa 200 reais por mês. As lições sobre desapego e minimalismo estão em dia.

Abraçar a impermanência da vida e buscar o que movia os meus antepassados nômades tem sido o foco para não pirar com tantas mudanças e poder ver a beleza desses momentos. Já retomei as aulas de alfabetização em português do Luigi e comecei a procurar escola para ele. Aguardo o início das aulas do doutorado em março (serão on-line, viva), retomei as aulas de inglês, leio Desonra, de J. M. Coetzee, imito o Predador, o dragão de três cabeças chamado Ghidorah, o Godzilla, entre outros a escolha do Luigi, enquanto toca a mesma música pela qual ele se apaixonou. São batalhas incríveis (rsrs). Tenho o sentimento de só precisar me manter viva para educar meu menino e seguir passo a passo as pequenas lutas cotidianas, que tudo vai ficar bem. Os grandes anseios dos vinte e poucos anos deram lugar aos preciosos momentos de normalidade que tanto valorizo hoje, aos (quase) 38. Que venha a vacina e a liberdade que tínhamos e esnobávamos.

 

Vanessa Brandão

Vanessa Brandão é jornalista amazônida. Manauara de nascimento, criada em Roraima, é indígena descendente do povo Wapichana. Doutoranda em Estudos Literários pela Unesp – SP, mestra em Letras pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), pesquisando sobre arte e literatura indígena. Tem especialização em Assessoria de Imprensa e Novas Tecnologias da Comunicação e em Artes Visuais, Cultura e Criação. Publicou seu primeiro livro em 2022, com o título ‘Entre Pinheiros e Caimbés’. Escreve poesias, crônicas e contos e trabalha na produção de um romance. Atualmente mora parte do tempo em Lódz, na Polônia e parte em Boa Vista, Roraima, no Brasil

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