CrônicasVivendo na Polônia

Diário de isolamento I

O verde pedindo passagem, adornado os galhos pelados.

Estamos em quarentena por conta de uma pandemia. Hoje é dia 14 de março de 2020, acabo de completar 37 anos e nunca vivi nada parecido. Não é terrível, é morno, pois nada acontece, o tempo parece ter desacelerado. Chegam notícias de mais um caso, mais um caso e mais casos. Dizem que não pega em crianças, o que tem me permitido manter a sanidade mental dentro desse apartamento. Eu, Reinaldo e Luigi revezamos entre conversar, brincar e telas: Youtube e Netflix, já que a TV não é útil para gente, que não entende uma palavra em polonês.

Hoje, em Lódz, o Governo afirma ter cinco casos confirmados, mas desde segunda-feira as escolas, universidades, teatros, cinemas estão fechados. Ontem, 13 de março, determinou o fechamento das fronteiras e fechamento de restaurantes, bares, cafés, shoppings, lojas. Somente supermercados e farmácias seguem funcionando, tudo para evitar a disseminação do vírus e proteger a grande população idosa do país, os principais afetados.

Reinaldo foi ao supermercado e trouxe salmão, camarão, biscoitos diversos no intuito subentendido de me animar. A convivência é harmônica até o momento. Ninguém reclama de nada, só pulamos da cama para o sofá, do sofá para a mesa da cozinha e nada do dia ficar noite. Penso no Brasil e na minha irmã que lançou a pré-candidatura a vereadora da nossa cidade, Boa Vista. Penso da minha mãe, tias e avós, com mais de 60 anos. Penso em Deus e em sua piedade.

Hoje é dia 19 de março de 2020 e os jornais informam que temos 305 casos confirmados em toda a Polônia. Aqui em Lódz já são 48 casos.  Cinco mortes em toda a Polônia, nenhuma em Lódz. A epidemia parece estar aumentando dentro do esperado. Lá fora observamos a primavera chegando, flores empurrando o lodo do chão, brotos colocando as cores para fora, querendo respirar o mundo e com eles eu teço uns fios de esperança de que muito em breve tudo volte ao normal.

Pinheiros verdinhos do jardim do condomínio, felizes com a chegada da primavera.

Em Roraima, tento convencer minha mãe a não ir ao supermercado diariamente. Ela adora isso. Teimosa, me manda rezar e parar de pensar no assunto. Nada de casos confirmados por lá, ainda bem, porém, isso faz com que todos fiquem mais tranquilos e acabem negligenciando a necessidade de ficar em casa.

Dentro de casa nós três brincamos com o tédio e de acompanhar o desenrolar da pandemia no mundo, bem como a alta do dólar e as baboseiras que o presidente do Brasil fala.

Hoje é dia 26 de março de 2020, temos 148 casos de Covid-19 em Lódz e 1078 na Polônia. E apenas 14 mortes. Dizer ‘apenas’ é dolorido, visto que toda vida perdida para o inimigo invisível importa e é triste, mas o país tem conseguido manter a epidemia sob controle relativo até agora. Dizem que até dia 11 de abril seguiremos em casa. Multas de até 30 mil para quem ousar sair sem ser para ir ao supermercado e ou farmácia. Alguns continuam a trabalhar nos serviços essenciais, o que garante o abastecimento da cidade.

Dia lindo de ir ao supermercado. No caminho, o contraste das arquiteturas.

Ontem o Brasil acompanhou estarrecido o presidente dizer que as pessoas deveriam voltar à normalidade. Triste. Meu estômago doeu de raiva e passei o dia e a noite debatendo, levando informações aos colegas, amigos, aos que insistem em replicar o que a máquina de fazer mentira, as milícias digitais replicam. Textos copiados e colados aos montes, indo de encontro ao mundo, aos médicos, as instituições. Uma irresponsabilidade enorme. Seguimos vendo quem é quem, cortando alguns de relações próximas e deixando outros longe da nossa visão digital.

Sinto-me segura em casa, ir ao supermercado é tenso, mas ao mesmo tempo fico feliz com o sol tocando suave no rosto, o vento gelado tentando entrar nas frestas do casaco, o céu limpo. Quando isso tudo acabar eu quero ir a um parque e deitar calmamente na grama, respirar e agradecer. Quero depois sentar em um café e apreciar a movimentação, a rua, as pessoas, a doçura das atendentes. Enquanto isso tenho tentado me controlar para não perder tantas horas só de olho nas notícias. As listas de afazeres têm me ajudado a manter o foco.

Luigi apreciando o sol e o vento gelado. Ao fundo, meu lindo varal de roupas. =)

Esse período me trouxe algo importante e fundamental: o início da escrita do meu primeiro livro. Depois conto mais sobre isso, ainda é um embrião sagrado, foi um ato cheio de importância abrir um arquivo no Word, colocar dois contos já escritos, transformá-los nos dois primeiros capítulos da obra e decidir: eis que estou escrevendo um livro.

A convivência com meus meninos continua suave, as vezes engraçada, sinto amor acima de tudo, sinto o tédio tentar fazer morada, o expulso com alguma mudança brusca na atividade cotidiana. Hoje, por exemplo, fiz Lives com minha irmã e uma amiga, sobre empoderamento feminino e mercado de trabalho, foi bom entrevistar e tá sendo bom percorrer esse caminho com minha irmã. Bonita a força que dão umas às outras. Uma candidatura só é possível com apoio sincero e firme de pessoas incríveis, que acreditam em você e no seu ideal. Elas representam isso e é lindo de ver. Vamos construir algo bom.

Voltamos em breve com cenas, espero, felizes dos próximos capítulos.

Seguimos!

 

 

 

Vanessa Brandão

Vanessa Brandão é jornalista amazônida. Manauara de nascimento, criada em Roraima, é indígena descendente do povo Wapichana. Doutoranda em Estudos Literários pela Unesp – SP, mestra em Letras pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), pesquisando sobre arte e literatura indígena. Tem especialização em Assessoria de Imprensa e Novas Tecnologias da Comunicação e em Artes Visuais, Cultura e Criação. Publicou seu primeiro livro em 2022, com o título ‘Entre Pinheiros e Caimbés’. Escreve poesias, crônicas e contos e trabalha na produção de um romance. Atualmente mora parte do tempo em Lódz, na Polônia e parte em Boa Vista, Roraima, no Brasil

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Vanessa Brandão

One thought on “Diário de isolamento I

  • Massa..Continuemos relatando. Fiz o meu também, juntando logo duas semanas.

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