CotidianoCrônicas

Sobre o bullyng sofrido e praticado na adolescência

Quarta-feira de cinzas foi meu aniversário e uma amiga perguntou preocupada: “Você está bem?”. “Sim!”, respondi. “Fiquei preocupada se você estaria no seu inferno astral”, disse ela. E eu me toquei sobre o porquê de uma noite quase toda em claro, repassando a vida desde a infância. Eu estava refletindo sobre o que hoje se chama bullyng, algo doloroso sobre o qual não podemos deixar conversar, refletir, fazer transbordar.

O inferno astral se projetou todo em uma única noite (acredito, porém, duvido também), me fazendo tirar conclusões um tanto difíceis sobre, por exemplo, ter que me redimir com algumas pessoas que passaram em minha vida na adolescência, vítimas de bullyng de minha parte. Sim, nem sempre fui uma fada sensata. Tinha um grupo de amigas e esse grupo tinha nome: Atrevidas. Cada uma tinha um número e nós basicamente éramos amigas e ‘bullygnávamos’ quem se aproximasse do grupo. Quanta babaquice juvenil, meu Deus, desculpe por isso.

Seria poético se esse clã feminino se ocupasse de ajudar outras meninas excluídas, fazer caridade, ler livros coletivamente, mas não. Era só diversão e sentimento de pertencimento, proteção, afinal, ser adolescente não é fácil, ser menina em uma sociedade pequena, machista, sendo ainda parda e moradora do subúrbio da cidade, é mais desafiador ainda. Então me perdoo, pois, estava eu também em uma guerra, buscando meu lugar ao sol. Não dava para proteger todas, éramos legais e protetoras com quem estava no grupo, se alguma menina queria entrar para o clã, avaliávamos, debatíamos, julgávamos as moças ávidas por sentirem-se aceitas. Feio isso. Peço perdão as envolvidas.

Nos primeiros anos de faculdade já achávamos essa coisa de dar nome a turma de amigos um tanto quanto patética, mas em Boa Vista era super levado a sério. Tinha Os Pilantras, os Jabuti´s, Xibobões, As Abusadas. Sim, pode rir. Lembro que havia gincana na cidade, onde os grupos faziam camisetas, adesivos de carro, delimitavam espaços, regras, modos de comportamento etc. Talvez tudo isso tenha tido sua importância para todos nós, no sentido de não se sentir só diante da falta de vida cultural na cidade.

Sei que os livros de salvaram. Livros e a visão crítica dos meus então ídolos da música à época: Raul Seixas e Legião Urbana. Com eles aprendi a me posicionar contra o colonialismo americano, que desde sempre tentava homogeneizar todos nós, jovens de país subdesenvolvido, morando no extremo Norte do país. Éramos periferia da periferia e só a arte poderia nos tirar do poço da imbecilidade, da apatia coletiva. Arte, bons professores e uma família disposta a educar para o bem, com amor e responsabilidade. Eu fui muito privilegiada por ter uma família amorosa, ornada de princípios corretos, de respeito ao próximo. Tenho desde sempre uma mãe amiga, em quem sempre pude confiar para contar tudo, do primeiro amor ao desejo incontrolável por uma calça da marca x, que me fizesse sentir um pingo mais bonita.

Tive também um pai presente, incentivador de sonhos, apreciador da natureza, mas também muito machista. Honra e moralidade, repressão de desejos e autocontrole foram desenvolvidos na severidade das palavras dele: “Não quero filha minha chegando grávida em casa”, “Não vai sair com esse moleque sozinha de carro não! Sem chance”. Eu toda arrumada, corria para o quarto com ódio no coração para chorar. Todo homem era um risco em potencial, mas isso me ensinou a olhar com desconfiança o sexo masculino. Com meu pai eu aprendi a identificar de longe um macho de índole ruim. Ainda teimei comigo mesma e com ele algumas vezes, mas a minha intuição já estava ativa e só melhoraria com o passar dos anos. Hoje, com quase 37, lendo o livro ‘Mulheres que correm com os lobos’, percebi o quanto essa voz interior sempre esteve presente me guiando. E ela foi incentivada pela minha educação familiar primeiramente.

Agora deixa dar uma de tiazona e dar alguns conselhos de vida sem ninguém pedir: valeriam muito dinheiro, mas vou dar de graça tá?! Ensine sua filha ou filho a acolher o coleguinha que vive de escanteio. Diga que ter cabelos lisos e loiros não é melhor que ter cabelos afro e que cada um tem sua beleza. Fale sobre sororidade para com as outras garotas, sobre quebrar o machismo estrutural, aquele que nos faz sempre julgar a mulher, colocando nela a culpa que certamente foi de ambos os sexos. Quantas vezes ouvi falarem mal das garotas que engravidaram, como se elas tivessem copulado com uma samambaia e não com o um cara que sabia bem o que estava fazendo ao transar sem caminha.

Ensine seu filho ou filha a não se importar com a roupa ou o calçado que o coleguinha usa e sim com o que ele sente e fala. Eu não me importava com as roupas, nem calçados, e percebi da pior maneira (na prática) o quanto tinha muita gente se importando. Sai ilesa das piadinhas e quebrei a corrente da futilidade ao não reproduzir esse comportamento quando pude comprar as roupas e sapatos que eu queria e ao ensinar meu filhote sobre o que realmente importa. Caráter, ética e honestidade são inegociáveis. O resto a gente dá um jeito.

Voltando a 2020, um dia depois do meu aniversário eu iria para a Cracóvia encontrar uma colega roraimense da época da escola. Ela estudou comigo alguns anos no Ayrton Senna. Íamos conhecer Auschwitz, o maior e mais temível entre os campos de concentração, maior símbolo do Holocausto operado pela Alemanha nazista. Sabe-se lá porquê, Luigi surtou quando eu disse que viajaria sozinha. “Por favor, não vá, eu preciso ficar com minha família unida, só isso”. Ecos dos seis meses que passamos no Brasil longe do Reinaldo, que ficou pela Europa estudando e também, acho, receio por estar longe dos avós, tia e tios. Aqui somos só nós três e o apego é maior, inevitavelmente.

Carina acabou tendo que ir sozinha à Auschwitz. Está viajando há quase 40 dias pela Europa. Lembrei dela magrinha de cabelos cacheados na esquina do Rio e de que talvez eu não tenha sido tão legal com ela em alguns momentos de nossa adolescência. Talvez nem lembre, mas eu sei. Escrevendo sobre tudo isso, dei graças a Deus ao amadurecimento que chegou para gente, ela viajando sozinha por vários países, sem medo algum ou indo com medo mesmo, eu morando aqui longe de todos. Enfim, sobrevivemos ao bullyng!

Vanessa Brandão

Vanessa Brandão é jornalista amazônida. Manauara de nascimento, criada em Roraima, é indígena descendente do povo Wapichana. Doutoranda em Estudos Literários pela Unesp – SP, mestra em Letras pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), pesquisando sobre arte e literatura indígena. Tem especialização em Assessoria de Imprensa e Novas Tecnologias da Comunicação e em Artes Visuais, Cultura e Criação. Publicou seu primeiro livro em 2022, com o título ‘Entre Pinheiros e Caimbés’. Escreve poesias, crônicas e contos e trabalha na produção de um romance. Atualmente mora parte do tempo em Lódz, na Polônia e parte em Boa Vista, Roraima, no Brasil

Vanessa Brandão tem 76 posts e contando. Ver todos os posts de Vanessa Brandão

Vanessa Brandão

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *