CrônicasVivendo na Polônia

#32 Impressões de uma macuxi em terras polacas

A cidade de Lódz (se pronuncia Úldiz) tem se mostrado, aos poucos, um lugar bem interessante. Com seus quase 700 mil habitantes, é a urbe mais verde da Europa, com o maior número de parques na zona urbana. Estamos na quarta e última fase da ‘nova normalidade’ pós pandemia, e, com isso, retomei meu roteiro de visitar cada um desses lugares. Pela primeira vez alugamos os patinetes elétricos, disponíveis pelas principais ruas da cidade. A brisa fresca da primavera a tocar no rosto é a perfeita tradução da palavra liberdade.  Reinaldo leva Luigi com ele, em pé, segurando com as mãozinhas firmes o guidão, gritando: é hora da adrenalinaaaaaa! Ventinho dos deuseeees, mamãaae. Uma figura esse nosso filho. Não passa despercebido em lugar nenhum. Os poloneses são discretos, falam baixo, calmo. Luigi é o oposto, fala alto, pergunta muito, cumprimenta estranhos.

Pela primeira vez fomos encontrar pessoas, depois de 75 dias de isolamento social. Conhecemos aqui um casal de brasileiros, gente finíssima, que também tem um filho pequeno. Aceitamos o convite para um encontro no parque próximo de casa. Lá estaria outro casal de amigos deles. Alugamos os patinetes e seguimos pela calçada infinita. Acessibilidade aqui é levada muito a sério. Não existem desníveis que atrapalhem o fluxo, ou seja, patinetes, carrinhos de bebê, patins ou cadeiras de rodas circulam tranquilamente pela cidade. Cada um tem sua vez no trânsito. Todos os cruzamentos tem sinais e faixas muito bem sinalizados. Quem avança sinal paga multa cara, isso inclui veículos e pedestres. Essa organização nos dá a boa sensação de segurança.

Chegamos ao encontro e tivemos a grata surpresa de conhecer um grupo de brasileiros, todos moradores de Lódz, cheios de experiências e sabedores dos macetes da cidade, pois moram há tempos por aqui. Fui logo apresentada a única polonesa da turma, uma estudante de filologia da língua portuguesa de uma universidade de Cracóvia. Tem como área, nada menos que a cultura do povo brasileiro. Ficamos o encontro inteiro conversando, falando de literatura, brasilidades, Machado de Assis, Clarice Lispector e povos indígenas, um dos maiores interesses dela. Que papo bom. Trocamos telefones. Incentivou-me a fazer doutorado em Cracóvia, na faculdade dedicada aos estudos da língua portuguesa e cultura latino-americana. Ficou aquela faísca acesa. Acho que muita água bonita ainda passará por baixo dessa ponte. Foi um sábado especial.

Encontro de brasileiros moradores de Lódz, na Polônia.

Retomei minhas caminhadas diárias pela cidade na última semana e sigo coletando impressões. As pessoas gostam muito de beber aqui, viu!? E vodka! Num passeio é quase certo encontrar um ou outro andando torto. É proibido beber na rua, porém, os muitos bares, restaurantes e conveniências ficam abertos o dia todo e é bem comum parar para um drink. Outros andam com pequenas e discretas garrafinhas de vodka escondidas na roupa ou em uma espécie de bolsa masculina transpassada no corpo. Eu achava que os russos tinham inventado a vodka. Engano, a bebida tem origem polonesa, talvez por isso criador e criatura andem sempre juntos.

Um outro problema social que pude perceber é a presença triste de idosos pedintes nas ruas mais movimentadas, no supermercado ou na estação central de bondes. Semana passada uma senhorinha de aproximadamente uns 80 anos chegou perto de mim com dois saquinhos, contendo leite, iogurte, algumas verduras e batatas. Ela disse algo em polonês (que eu não entendi, claro), mas compreendi sua necessidade. Paguei as comprinhas dela que me agradeceu balançando as mãos trêmulas. Que dó. Perguntei para a estudante polonesa, no encontro de sábado, sobre o porquê de vermos alguns idosos nessas condições. Ela contou que aqui só existe aposentadoria para quem pagou o instituto de previdência ao longo da vida. Ou seja, sempre vai ficar alguém de fora, por um motivo ou outro. É dolorido.

Mas sabe o que é muito raro de se ver por aqui? Gatos ou cachorros de rua. Estou morando em Lódz há quase seis meses e sabe quantas vezes vi um bichano ou um pet sem dono? Uma! Dia desses ao voltar do parque com Luigi, vi um gato de rua peludo. E vi as pessoas consternadas com o miau, que andava sorrateiro na praça. Cachorros e gatos são levados muito a sério. Existe um amor enorme por eles. Isso é perceptível nas ruas, na permissão para entrar com eles em quase todos os lugares, de farmácias a restaurantes. Nesse aspecto, a Itália e a Polônia se parecem muito, o que me faz deduzir que existem políticas púbicas serias para evitar o abandono animal. Excelente, porém, eu não pude deixar de estranhar profundamente que não se tenha corrigido o acesso a uma aposentadoria digna a todos os idosos, evitando que alguns estejam em situação de pedintes.

Por fim, alguns amigos me perguntam se já sofri algum tipo de preconceito por aqui. Respondo com alívio que não, absolutamente nenhum. Ao contrário. As pessoas que trabalham no comércio são doces, simpáticas, umas queridas e queridos. Se esforçam para entender o meu inglês precário, fazem mímica quando necessário, sorriem e esperam com paciência eu digitar algo no Google Tradutor, aplicativo mais utilizado por mim nos últimos tempos. São bem mais discretos que os italianos. Aqui nunca ninguém perguntou de onde eu sou. Na Itália era comum ter que responder: brasileira. Na Polônia a discrição reina. Nas ruas as pessoas se esforçam para não olhar ou pelo menos, não deixam que percebamos que estão olhando. É cada um na sua. Exceto com criança. Vejo olhares de carinho e meio sorriso para o Luigi. Isso me conforta.

Essa é minha experiência até o momento, com exceção da senhora mal humorada que atende na conveniência aqui perto de casa e de outra que auxilia nos caixas automáticos no supermercado. Ela é bravíssima. Achei que era comigo, apenas. Já me armei toda. Nos dias seguintes, porém, percebi que a fala alta era com todo mundo que se atrapalhava na hora de passar as compras. Não é preconceito, é mau humor europeu mesmo.

Assistimos ao filme O Zoológico de Varsóvia nessa semana. A película não está disponível no Netflix aqui da Polônia e o motivo é a dor que deve provocar. Esse povo sofreu enormemente com o holocausto, a questão é sensível demais. No entanto, fundamental para que nos aproximemos dessa gente que nos acolhe tão bem, é conhecer sua história de luta e superação.  Até breve com mais percepções.

Vou deixar aqui o link do vídeo de minhas aventuras com o Luigi, explorando um dos parques aqui da cidade. Veja aqui.

Luigi explorando um dos parques da cidade

 

 

Vanessa Brandão

Vanessa Brandão é jornalista amazônida. Manauara de nascimento, criada em Roraima, é indígena descendente do povo Wapichana. Doutoranda em Estudos Literários pela Unesp – SP, mestra em Letras pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), pesquisando sobre arte e literatura indígena. Tem especialização em Assessoria de Imprensa e Novas Tecnologias da Comunicação e em Artes Visuais, Cultura e Criação. Publicou seu primeiro livro em 2022, com o título ‘Entre Pinheiros e Caimbés’. Escreve poesias, crônicas e contos e trabalha na produção de um romance. Atualmente mora parte do tempo em Lódz, na Polônia e parte em Boa Vista, Roraima, no Brasil

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