CrônicasVivendo na Polônia

Fui embora do Brasil, mas o Brasil não vai embora de mim

Passo por um fenômeno interessante e, de certo modo, angustiante nessa jornada migratória para o velho continente: fui embora do Brasil, porém, também não fui. Quando penso em ver um jornal, é do Nacional que sinto falta. Quando quero ouvir as notícias, é a Folha que abro, a de São Paulo e a de Boa Vista. Quando ouço música, é a brasileira que mais me toca. Quando eu penso em ir ao médico para tratar da rosácea que há um mês deixa meu rosto vermelho, é das dermatologistas de lá que eu sinto falta. É com meus familiares, mesmo com toda brabeza que nos é peculiar, que quero dialogar nos fins de semana entre um chope e outro. O frio perdeu a graça, tenho me irritado com as camadas de roupas e com tantos acessórios, pano, peso, tudo indispensável antes de sair de casa, nem que seja para comprar um pão.

Já arrumei colegas aqui na Polônia, mas veja que coincidência: são brasileiros. Minto: conheci uma polonesa muito querida, prestativa, que me ajudou bastante com dicas, gentilezas, presentinhos, mas receio que a paciência tenha mais a ver com o fato dela ser Testemunha de Jeová e acreditar numa possível conversão religiosa de minha parte do que simpatia gratuita por mim. Todos os outros amigos são brasileiros.

Fui a farmácia comprar melatonina e pomada para passar nos hematomas das canelas do Luigi, ele que insiste em correr dentro de casa e bater a canela na mesinha de centro, no sofá, na mesa da cozinha. A melatonina consegui pedir ao farmacêutico com meu inglês iniciante, no segundo item eu preferi não arriscar e escrevi no Google Translator: pomada para hematomas e mandei traduzir para polonês. Com cara de estranhamento o farmacêutico olhou-me e mandou um “na Polônia é proibido passar esse tipo de medicamento em crianças, aqui nós só usamos pomadas com princípios ativos naturais, como a arnica”, disse-me em inglês compassado e cara desconfiada. E pela primeira vez desde o início de 2020, quando chegamos por aqui, um polonês perguntou de onde eu era. “Eu sou do Brasil” disse eu, sorrindo automaticamente por trás da máscara. Saí da farmácia me questionando sobre o porquê de meu orgulho e alegria ao me declarar brasileira. É tipo relação abusiva: você sabe dos problemas, mas sente falta da criatura.

Eu percebo com indignação que os alimentos vendidos aqui são mais acessíveis no preço e bem melhores na qualidade, na variedade, na quantidade de sódio e açúcar. Esses dois pesos e duas medidas da indústria alimentícia europeia e brasileira me fazem sentir explorada, enganada uma vida inteira. No Brasil paga-se caro por alimentos de baixa qualidade, que não só prejudicam a saúde como contribuem enormemente para a obesidade e diabetes. Enquanto o consumidor não boicotar as grandes redes, comprar efetivamente só do pequeno produtor, exigir transparência e mais responsabilidade, as coisas não mudarão. Enfim, uma luta que não posso abraçar, mas constato e sinto vontade de alertar todo mundo.

Já pensei em sair das redes sociais, achei que eram elas a me fazer vivenciar de forma tão intensa o cotidiano brasileiro, mas percebi que só o fato de toda minha família e amigos estarem lá, as notícias sobre o país, sejam elas boas ou ruins, serão sempre as que quero clicar. Já tentei pensar de modo mais egoísta e viver a oportunidade, esquecer um pouco as mazelas provocadas pela desigualdade social no meu país, mas as leituras do doutorado me levam por caminhos de um Brasil ainda mais profundo. Sem dúvida cursar o doutorado em universidade brasileira colabora para esse vínculo que não se desfez, nem em sonhos.

A experiência em Lódz se resume a nove meses, quase sempre em isolamento social, ou seja, não conhecemos muito além dos parques (por serem espaços abertos) e alguns cafés e restaurantes da Rua Piotrkowska que frequentamos nos primeiros dois meses de 2020, antes das primeiras medidas restritivas de circulação. Depois de meses de isolamento, tivemos mais uma temporada no Brasil e retornamos em fevereiro de 2021, com tudo fechado ainda. Talvez essa não vivência na cidade que nos abriga impulsione meu coração a supervalorizar tudo o que vem dos trópicos.

Outro fator é a língua polonesa, essa caixa dourada e muito bem lacrada de pronuncias complexas, palavras longas pouco melódicas. Talvez 70% das pessoas falem inglês por essas bandas, mas em geral o sentimento de querer dialogar e se relacionar gira em torno de 2%. Outro dia emocionei-me com o sorriso de uma mãe para mim e Luigi. Estávamos saindo do parquinho, eu o ajeitei, fechei casaco, coloquei a touca, o cachecol, ele subiu no patinete e saímos deslizando sob as rodinhas e ela, a mãe e seu filhote mais ou menos da mesma idade que Luigi vinham do outro lado. O garotinho estava sentado em um carrinho de três rodas e ela empurrava-o distraída, quando nos viu deu aquele sorriso de cumplicidade. Coisa simples e rara por essas bandas.

Escrevo para lembrar-me desse longo inverno daqui a 10 anos. Já estamos em 26 de abril de 2020. Acordamos com -1° em plena primavera. Dentro de casa o clima não nos castiga. Os aquecedores espalhados pelo ambiente garantem temperatura média de 24°. Se esfria ou esquenta um pouco lá fora, ajustamos os botões e pronto. Não passo frio mas sinto extrema falta do sol. Isso me faz não gostar do que escrevo. Sinto-me confusa, exagerando em alguns pontos e atenuando outros, mas publico por manter todos os tons dessa verdade confusa na qual vivemos. Em breve poderei me vacinar, diz um calendário. Certamente me trará mais tranquilidade, porém, quando falo especificamente de vacina adivinha que dura realidade me vem à cabeça?

Estamos em 30 de abril e finalmente pude fazer o agendamento para tomar a vacina. Será dia 19 de maio, 7h.  A temperatura aumentou para incríveis 16°, o céu ficou azul quase todos os últimos dias e, com  isso, meu humor saiu do vale das trevas. Sigo nesse conflito entre identidade, raízes, preocupação, certa culpa por expressar meus ‘problemas’ de pessoa cheia de privilégios e uma enorme torcida para que o tempo ande, tudo se acalme e eu consiga estar mais aqui desse lado do Atlântico. Já conclui que a melhor maneira de amar o Brasil é estar longe dele, mas isso pode atrapalhar toda uma adaptação a essa cultura tão nova e às vicissitudes de ser migrante.  Preciso ser meu presente no presente.

Editado: No dia 2 de maio soube que havia uma ação do governo Polonês chamada Vacina no parque, onde qualquer pessoas maior de 18 poderia ir se vacinar durante todo o final de semana. Um casal de amigos brasileiros passou aqui em casa e fomos nessa missão. Depois de 1h e 30 na fila, saímos vacinados e felizes com a dose única da Jansen/Johnson e Johnson. Enorme alívio, mas também tristeza ao ver que no meu país de origem pessoas de todas as idades, inclusive jovens, morrem diariamente. Uma assustadora média de 2 mil mortes por dia nas últimas duas semanas.

 

 

 

 

Vanessa Brandão

Vanessa Brandão é jornalista amazônida. Manauara de nascimento, criada em Roraima, é indígena descendente do povo Wapichana. Doutoranda em Estudos Literários pela Unesp – SP, mestra em Letras pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), pesquisando sobre arte e literatura indígena. Tem especialização em Assessoria de Imprensa e Novas Tecnologias da Comunicação e em Artes Visuais, Cultura e Criação. Publicou seu primeiro livro em 2022, com o título ‘Entre Pinheiros e Caimbés’. Escreve poesias, crônicas e contos e trabalha na produção de um romance. Atualmente mora parte do tempo em Lódz, na Polônia e parte em Boa Vista, Roraima, no Brasil

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