CotidianoCrônicas

Crônica sobre o sono

Não dormir bem acaba com qualquer possibilidade de um dia bom e produtivo. Tenho inveja dos que dormem seis horas por dia e ficam me afrontando com sorriso no rosto. Você conhece um desses? Ou é um desses? Se for, para tudo e agradece ao seu Deus, pois não é nada confortável ter a necessidade de dormir 8 horas corridas em total escuridão e sem ruído algum, para que, só então eu possa ter um dia 100%.

Há cinco anos, mais ou menos, eu sou a chata do ‘ai, dormi mal essa noite’. Eu já fico com raiva no meio da madrugada pensando que no dia seguinte vou sentir aquele peso estranho na cabeça, aquela dor bem característica e aí é que não durmo mesmo. Para que a bicha monstruosa chegue, basta sair da rotina e dormir em um lugar diferente, o que tem ocorrido com boa frequência nos últimos tempos. Outro gatilho é ter a obrigação de acordar cedo (de 7h30 para baixo é cedo pra mim) com o despertador do celular. Céus, queria eu viver num mundo no qual não sejamos todos escravos do alarme do celular, um mundo no qual tivéssemos  a liberdade de perceber o sopro do nosso anjo guardião nos despertando para a vida lentamente a cada manhã, cada um no seu próprio tempo e horário. Eu sei que não dá pra voltar atrás em nossa organização social, mas tenho certeza que a insônia não atingiria até 40% da população mundial, segundo estudos recentes, se isso fosse possível.

Passar um tempo na casa da mãe é acolhedor e maravilhoso por vários motivos, mas até eu me acostumar com os barulhos da casa, meu sono foi diretamente afetado. Não sei se com você, mas pra mim pode ser o hotel mais fino ou a rede mais gostosa, dormir a primeira vez em um lugar novo é sempre meio dormir e meio vigiar. Lembro de ter dormido por várias vezes,  na infância, no barracão de palha do sítio do vovô e mesmo depois de um dia inteiro de correrias e brincadeiras, dormir era desafiador. Pássaros noturnos com seus cantos agourentos se revezam para assustar, vacas soltam mugidos solitários, que mais parecem o anuncio de alguma visão de outro mundo ou o pouso de uma nave espacial no meio do lavrado. Além disso, era certeira a chegada da Cruviana nas madrugadas, com seu sopro arrepiante, essa sim fazia meu coração de menina disparar. Eu só ficava tranquila mesmo quando via o sol nascer e afugentar os mistérios noturnos. A primeira atividade era ver a ordenha das vacas, depois seguir brincando, esquecendo da noite mal dormida. Hoje não!

Depois de uma noite mal dormida eu me arrasto e só finjo passar bem, mas quero mesmo é inventar estratégias para, na noite seguinte,  conseguir deitar cedo e recuperar o sono perdido e geralmente até consigo, depois de respirações e uma reza meditativa intensa. Enfim, essa volta ao Brasil e a adaptação à casa da mamãe tem mexido total com a rotina, e a mente, essa coisa com vida autônoma dentro da gente, decide pensar, no meio da madrugada, na dissertação do mestrado e nos próximos parágrafos ou itens do sumario que terei de escrever. Lembra também do sujeito de pesquisa que viaja muito e que talvez não haja tempo suficiente até setembro para entrevista-lo novamente, bem como lembra do orientador que está de férias  e ainda lembra de como seria maravilhoso já ter feito tudo isso e acordar mestre e assim passaram-se algumas horas e o dia seguinte será inevitavelmente complicado. A ciência explica a insônia, muito comum na vida adulta, dizendo que o nível de melatonina vai caindo consideravelmente depois dos 30, além, claro, das mudanças anuais que ocorrem no mundo todo. Mudam as redes sociais, muda o nosso modo de conversar e interagir com o outro, mudam as informações sobre saúde e alimentação, mudam leis e convenções sociais, tecnologias  e muda e muda e assim vai, ficamos perdidos em meio a tanta informação e cobrança por atualização, como desligar e dormir como antigamente?

Foi aí que nos últimos dias eu tomei uma decisão: não reclamar mais, não contar para o marido que lá na Itália quer me arranjar soluções, não comentar com minha mãe que não tem culpa da minha inquietação e manias desnecessárias pré-sono e só tem tentado acolher todos os quatro filhos na mesma casa nessas férias e surpresa! Quando decidi parar de reclamar, corpo e mente parecem ter começado a se acostumar com a nova rotina, com a nova cama, travesseiros, cheiro do quarto, barulhos da casa e passei a dormir pesado nos últimos quatro dias, um balsamo, um privilégio acordar revigorada, sem gotas de sono a pairar e pressionar meu crânio. Nem a dor no quadril, nem o Luigi que se joga sobre mim algumas vezes durante a noite, nem o meu tapa olho novo ou a tosse do meu irmão conseguiram atrapalhar o descanso merecido. Coisa ilógica e complexa é esse nosso apagar noturno, talvez tenham precisado de mim e me apagaram, para ajudar em algum trabalho no mundo espiritual, esse que todos nós frequentamos ao dormir e onde recarregamos as baterias para retornar ao trabalho duro nessa terra pesada, densa, cheia de incoerências e incômodos diversos ou talvez seja só a boa vontade de parar de reclamar e enfrentar as limitações impostas por mim mesma em algum momento sem noção. Sei lá, mistério.

Ps.  Converse com seu médico e peça indicação de um remedinho para quando bater a insônia por motivo de viagem, mudança, expectativa extrema ou crises e simplesmente apague. Não tenha preconceituoso, respeite seu corpo e sua mente e perceba quando estiver no limite. A ciência avançou e desenvolveu bons medicamentos e isso é uma conquista da humanidade. Em um congresso espírita no ano passado, um dos palestrantes disse, em suma, que o desenvolvimento de medicações para o bem estar da humanidade é um dos aspectos da compaixão divina para conosco, então, façamos uso consciente e responsável dessas benesses. Bom soninho pra você e pra mim!

 

 

Vanessa Brandão

Vanessa Brandão é jornalista amazônida. Manauara de nascimento, criada em Roraima, é indígena descendente do povo Wapichana. Doutoranda em Estudos Literários pela Unesp – SP, mestra em Letras pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), pesquisando sobre arte e literatura indígena. Tem especialização em Assessoria de Imprensa e Novas Tecnologias da Comunicação e em Artes Visuais, Cultura e Criação. Publicou seu primeiro livro em 2022, com o título ‘Entre Pinheiros e Caimbés’. Escreve poesias, crônicas e contos e trabalha na produção de um romance. Atualmente mora parte do tempo em Lódz, na Polônia e parte em Boa Vista, Roraima, no Brasil

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