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Impressões sobre conflito na Ucrânia: olhar ainda confuso de quem mora na Polônia

Tenho pouco tempo para escrever até ser interrompida por algum pedido do Luigi. E esse texto vai se encerrar abruptamente quando ele vier, porque o tempo das mães não é um tempo corrido no qual se pode produzir coisas coesas com início, meio e fim. Mães vivem interrompidas em suas atividades, principalmente se forem artísticas. Talvez por isso Clarice Lispector tenha escrito tanto sobre o filho, o cachorro e o cotidiano, pois olhar para o mundo lá fora e buscar entendê-lo e depois interpretá-lo demanda tempo e capacidade de  (Luigi chegou mais rápido do que imaginei).

Fiz o café da manhã dele e sigo por outro fio da meada. Hoje são 9 de março de 2022, faz sol,  o céu está sem nuvens, mas as temperaturas ainda estão baixas. Estamos todos com Covid-19, ela chegou em nossa família no momento mais angustiante que passamos por aqui. Esse pós aniversário está sendo pesado como nunca antes tinha sido. Dizem que temos sintomas leves e damos graças a vacina. Luigi de fato ficou pouco doente, nada além do nariz congestionado, tosse e um dia de febre. Reinaldo tem bronquite asmática e mesmo tendo sido o primeiro a se contaminar, está no 12º dia de recuperação e ainda tosse bastante. Eu estou provavelmente no 7º dia e sinto um mal estar generalizado, muito congestionada todos esses dias. Já tive febre e dores fortes na garganta nos primeiros dias, fiquei de cama e pensei que morreria se não tivesse sido vacinada. Hoje sigo me recuperando. É preciso destacar que Rei e eu nos sentimos abalados psicológica e cognitivamente, esse vírus também tenta nos deixar meio doidos.

A cidade de Lódz fica a 1.200 km da fronteira com a Ucrânia. É longe, mas o medo chega aqui, chega a mim pelo menos. Ver as notícias das mulheres e crianças fugindo em meio ao frio do leste Europeu me corta o coração. A rua Piotrkowska (principal rua comercial da cidade, a maior rua comercial com arquiteturas diversas da Europa) está cheia de gente, famílias com malas, ursinhos de pelúcia e ansiedade nos olhos. Agora as cidades da Polônia são também as cidades dos refugiados da guerra ucraniana. Acolhem-os muito bem até o momento, pois são povos amigos de longa data, de longa resistência e sofrimento, sobreviventes de duas grandes guerras. Mas só se abriu agora, há meses atrás o Governo jogava jatos de água em imigrantes vindos da Bielorrússia e nunca foi simpática aos vindos da África e oriente médio.

Se vamos embora? Eu já dei meus gritos aqui, já me acalmei e olhei as coisas de forma mais realista. Em tese Putin não atacara países membros da Otan (a Polônia é um deles) porque seria um ataque ao maior exército do mundo e as consequências seriam muito graves para ele, e para o mundo inteiro, porém, quem me garante a sanidade de Putin? Quem me garante que os EUA e o presidente da Ucrânia não têm interesses outros nessa guerra? Tenho lido sobre geopolítica internacional e ficado ainda mais em dúvida diante do complexo jogo de interesses de homens e mercado e concluo que resta ao cidadão comum o medo, já que tudo pode acontecer. Minha mãe está aflita, minhas tias aflitas, amigos e amigas me mandam mensagens diariamente. Isso me deixa ainda mais receosa, mas não podemos abandonar tudo o que foi sonhado e investido para estarmos aqui. Faltam três meses para Luigi concluir o ano letivo, fechar o primeiro ano escolar e Reinaldo concluir o 6º semestre. Já eu, posso seguir com meus estudos de qualquer lugar do mundo, fechei meus créditos em disciplinas, só preciso ler e  escrever minha tese, fazer meu trabalho de campo, mas ainda assim estou bem adiantada no meu processo, com elogios da orientadora e tudo.

Hoje já é dia 11 de março de 2022 e a Covid persiste. Mais fraca, porém, ainda acordei congestionada, me arrastando. Depois de três cafés sinto-me mais animada. Minha família faz pressão para que retornemos. Vi preço de passagens e ainda não aumentaram o preço. A vice-presidente dos EUA esteve na Polônia e aqui reafirmou, junto ao presidente, que a história de enviar caças não vai se concretizar, pelo menos não agora. O conflito se concentra na Ucrânia. É terrível ouvir notícias de lá, há sofrimento intenso para mulheres e crianças, principalmente. Incrível como tudo muda na fronteira para a Europa, mas até quando receberão tanta gente assim de braços abertos? Eu conheço a frieza europeia e não vejo com otimismo nenhum cenário. Voltar ao Brasil também seria um desafio. O preço das coisas me assusta, da gasolina aos alimentos, tudo é caro, tudo aumenta, a guerra também existe por lá, apesar de ser diferente. Sabia que o número de assassinatos no Brasil é maior do que quase todas as guerras atuais no mundo? Aqui, ando de noite sozinha na rua quase sem medo, eu não preciso atravessar a rua quando vejo um grupo de homens. Eu não preciso sentir meu coração acelerar se me vejo sozinha na rua, nos parques. Enquanto a imprensa brasileira cobria a guerra na Ucrânia, o Governo brasileiro tentava aprovar no congresso, projeto de exploração nas Terras Indígenas. Lucro e cobiça guiam esse Governo e boa parte do povo do meu país Roraima, apoiando e vibrando. Olhares cheios de racismo, preconceito, uma tristeza. Fiquei sem forças para argumentar qualquer coisa.

A Covid talvez esteja me deixando mais pessimista que o normal…  talvez eu não esteja vendo a realidade e tenho ainda que ter equilíbrio para brincar de massinha de modelar com Luigi nesse instante e disfarçar toda e qualquer preocupação. Ele pediu para não ouvir a palavra ‘guerra’ só por hoje. Desligamos a TV e fomos brincar.

Vanessa Brandão

Vanessa Brandão é jornalista amazônida. Manauara de nascimento, criada em Roraima, é indígena descendente do povo Wapichana. Doutoranda em Estudos Literários pela Unesp – SP, mestra em Letras pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), pesquisando sobre arte e literatura indígena. Tem especialização em Assessoria de Imprensa e Novas Tecnologias da Comunicação e em Artes Visuais, Cultura e Criação. Publicou seu primeiro livro em 2022, com o título ‘Entre Pinheiros e Caimbés’. Escreve poesias, crônicas e contos e trabalha na produção de um romance. Atualmente mora parte do tempo em Lódz, na Polônia e parte em Boa Vista, Roraima, no Brasil

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