CotidianoCrônicas

A confusão do curto e quero tudo

Fulana sempre passeia com o filho em praças. Preciso levar o meu com mais frequência. Eles estão juntos novamente, que bom! Os cachorrinhos quando pequenos são a coisa mais fofa. Preciso dar banho nos meus. Nossa, todo mundo saindo com as amigas. Há tempos eu não ligo pra elas. Assim não vou mais ter amigas. Ai que comida gostosa, quero conhecer esse lugar. Que doce lindo. Será que é bom? Para! Você está de dieta! Olha que corpo lindo, gente. E esse lugar maravilhoso. Nossa. Preciso pagar o boleto da minha passagem. Eu preciso estudar também e levar o filho no pediatra. E escovar os dentes dele. Nossa. Semana que vem vai ser cheia, tenho que renovar a carteira de motorista. Olha esse pôr do sol. Meu pai, ela separou! Que chato. Será que tá bem? Será que eu ligo pra dar uma força? Ele já está com outra, gente! Eita, não retornei a ligação pra mamãe, vou ligar agora.  Que cara babaca, gente. Vou bloquear agora, porque não sou obrigada a ficar vendo isso!

E lá se foi mais de 1 hora no celular, ela navegando nas redes sociais e nos pensamentos, nas cobranças, nas pequenas comparações e até nas comparações de forma inconsciente. Pra onde vai assim, com a cabeça abarrotada de informação, adormecendo exausta da luta contra o que, não é?

Embarcamos nessa nave de informações e nos recusamos a refletir sobre onde isso vai nos levar. Temos maquiado nossas reais necessidades e substituído nossos verdadeiros desejos por sonhos alheios, sonhos de terceiros, que parecem ser até legais, mas não são os nossos, os que vem de dentro, realmente, desde os primórdios. E não é que sonhos, desejos e necessidades não podem nascer de uma hora pra outra ou entre um post e outro, é que isso tem ocorrido todo dia e assim não se realiza nada de concreto. Tudo tem início, meio e fim, vontade, planejamento, luta e sucesso. Quando se perde a capacidade de iniciar, executar, enfrentar o tédio dos dias normais até finalmente chegar aonde se quer, é arriscado. É um passo para a infelicidade, para o vazio, sabe? A vontade de não sei o que? Vontade de tudo e de nada ao mesmo tempo?

É preciso saber usar, com cautela e criticidade todos esses recursos tecnológicos, que nos dão a impressão de inclusão, de coletividade, de viver em sociedade mais do que nunca, porém, na prática nos tira o foco, o convívio, o sono. É que nem remédio: passou da medida, vira veneno e mesmo dentro da medida, os efeitos colaterais sempre podem surgir. Seguir, curtir, postar, tudo com muito critério.

 

Escrito em 23.12.18 

Vanessa Brandão

Vanessa Brandão é jornalista amazônida. Manauara de nascimento, criada em Roraima, é indígena descendente do povo Wapichana. Doutoranda em Estudos Literários pela Unesp – SP, mestra em Letras pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), pesquisando sobre arte e literatura indígena. Tem especialização em Assessoria de Imprensa e Novas Tecnologias da Comunicação e em Artes Visuais, Cultura e Criação. Publicou seu primeiro livro em 2022, com o título ‘Entre Pinheiros e Caimbés’. Escreve poesias, crônicas e contos e trabalha na produção de um romance. Atualmente mora parte do tempo em Lódz, na Polônia e parte em Boa Vista, Roraima, no Brasil

Vanessa Brandão tem 76 posts e contando. Ver todos os posts de Vanessa Brandão

Vanessa Brandão

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *