CrônicasVivendo na Itália

Percebendo e enfrentando o complexo de vira-lata em tempos difíceis

Ilustração @sociologia.liquida

Nelson Rodrigues que me desculpe, mas já está na hora de superarmos o famigerado “complexo de vira-lata” e melhorar a autoestima tão prejudicada nos últimos tempos. Mesmo com os micos presidenciais, com os problemas sociais que só se agravam, com o poder de compra que só míngua e com a violência que só aumenta, é preciso compreender que o Brasil e os brasileiros são maiores que tudo isso e capazes de superar provações ainda maiores.

Eu fui morar fora com a família pela força da indignação generalizada, pela falta de esperança de dias melhores, mas me deparei com tantos sorrisos e tanta gente apaixonada pelo Brasil, que a comoção silenciosa foi inevitável. É que o nosso país padece de problemas resolvíveis pelo homem, estamos acomodados no meio de uma placa tectônica, temos água doce em abundância, temos campos férteis, sol e chuva, vento, minerais e uma alegria gratuita simplesmente impressionante, que inebria os estrangeiros com nossa vã felicidade. Esses dias um canadense, colega do Reinaldo, contou que veio passar as férias do Brasil e em meio aos relatos de encantamento com o país, contou rindo que foi assaltado no Rio de Janeiro e na sequência reafirmou “mas nem isso me tirou a impressão maravilhosa que tenho do país e do povo”. Homem doido, gente, ele ria de ser assaltado. Em verdade ele ria provavelmente do quão clichê é a situação, pois deve ter ficado muito puto na ocasião.

Falta-me vivência para dizer se este sentimento de simpatia pelo brasileiro é generalizado, talvez não, mas fato é que na Itália, nos lugares por onde andamos, tivemos um feedback sempre positivo ao falar de nossa origem, mais ainda ao contar que somos amazônidas. Os olhos se enchem de curiosidade, o sorriso é certo e a simpatia se faz.

Na cidade de Foggia, também submersa na falta de emprego e na má prestação de alguns dos serviços públicos, como a limpeza da cidade, por exemplo, é possível perceber a insatisfação generalizada no foggiano com o local em que habitam. Eles têm uma criticidade super aguçada e adoram falar sobre isso. Chegamos em época de eleições e presenciamos os candidatos percorrendo praças e parques a pé, conversando com a população, debatendo problemas em alto e bom tom com o cidadão, lá o corpo a corpo é mais importante do que qualquer material publicitário, é preciso mostrar que sabe dos problemas e como irá contribuir para solucioná-los. Agora, uma questão é totalmente perceptível: só eles podem falar mal da cidade ou da Itália de modo geral. Defendem sua italianidade diante de qualquer aceno de crítica externa, sabem do seu valor e de seu papel no mundo.

Ter um cidadão crítico é essencial para o Brasil, mas ter um povo afundado na má vontade tanto individual como coletivamente é perigoso para a nação, é a inércia. Não apelo para romantizar o caos, mas ressaltar nossas qualidades, como a criatividade, o otimismo, o poder de celebrar a vida apesar de tudo, a capacidade de dedicar-se a projetos altruístas e de ajudar o próximo, entendo isso como um gesto paralelo ao papel de cidadão.

Reflito que talvez, se não esperássemos só pelo poder público, quem sabe se nos atrevêssemos a fazer com as próprias mãos, na própria família, na própria rua e bairro, buscar um modo de servir melhor, de ser ponto de cooperação e equilíbrio, vestindo a camisa da generosidade, liderando pequenos processos, pequenos conflitos, tentando combater nossos próprios defeitos e preconceitos, ou talvez se cobrássemos mais dos políticos, se nos transformássemos em chatos, abarrotássemos as caixas de e-mails, o WhatsApp, nos tornássemos participativos nas decisões que precisam ser tomadas, apoiando aquele que trabalha direito, criticando de forma construtiva e respeitosa o que se perdeu no caminho torto da velha política. O melhor fiscal do político é o povo e não as instituições fiscalizadoras. É perfeitamente possível e altamente necessário ter um povo crítico de nossas mazelas, mas consciente de que não somos a periferia do mundo, temos, aliás, a mesa posta para fazer a melhor das refeições sendo preciso apenas organizar e quem é bom nisso, por favor, pare de reclamar e comece a ajudar. Penso que ter saído do meu país foi algo importante e que me ajudou na ressignificação de alguns aspectos, pois eu estava vivendo no automático, irritada com a intolerância até então escondida, com a perda diária do poder de compra, com a inflação, com a cegueira ideológica de ambos os extremos e com outras demandas pessoais.

Meu sentimento ao chegar ao Brasil, depois do susto com a mamãe, é de querer ficar, de fazer projetos, trabalhar e educar meu menino para contribuir com nosso país, mas desenhamos planos para estar longe ainda e escrevo com sentimento de saudade acumulada e amor incondicional por todo calor humano que emana desse país tropical.

 

Vanessa Brandão

Vanessa Brandão é jornalista amazônida. Manauara de nascimento, criada em Roraima, é indígena descendente do povo Wapichana. Doutoranda em Estudos Literários pela Unesp – SP, mestra em Letras pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), pesquisando sobre arte e literatura indígena. Tem especialização em Assessoria de Imprensa e Novas Tecnologias da Comunicação e em Artes Visuais, Cultura e Criação. Publicou seu primeiro livro em 2022, com o título ‘Entre Pinheiros e Caimbés’. Escreve poesias, crônicas e contos e trabalha na produção de um romance. Atualmente mora parte do tempo em Lódz, na Polônia e parte em Boa Vista, Roraima, no Brasil

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