Crônicas

Mulheridades I

Muita gente nunca parou para pensar nos pequenos comportamentos que perpetuam maldades seculares, estas responsáveis por minar aos poucos o bem estar feminino, culminando numa cadeia de transtornos e aflições secretas. Não é do dia para a noite, mas existe um adoecimento coletivo, nutrido por padrões e modelos pré-estabelecidos para ‘ser mulher’ e nós acabamos repetindo esse enredo no automático, nos distanciando do que realmente gostaríamos de ser. Por vezes a alienação é tão forte que replicamos isso entre amigas, colegas, familiares e exigimos umas das outras o respeito a determinadas regras de conduta que no fundo só minam nosso tempo, dinheiro e descanso.

O papo com uma colega artista pelo direct do Instagram era sobre isso: as pessoas querem rótulos e potinhos bem identificados. É uma busca por controle e segurança que deixa todo mundo angustiado e inseguro. As mulheres querem controlar, inclusive, o que outros pensam sobre elas: nos preocupamos com as impressões que serão deixadas por nossas roupas, nossos sapatos, a forma do nosso corpo, cabelos e cheiros. São tantas camadas, tantos detalhes que fica humanamente impossível pensar em tudo e dar o melhor em todas as áreas. Essa é a primeira prisão e ela te tira algo fundamental, que é a capacidade de pensar nos seus quereres, suas reais paixões, aquilo que você faz realmente com gosto e satisfação.

Por isso é fundamental saber repetir alguns ‘nãos’, só para lembrar que eles podem ser terapêuticos: não priorizar o cuidado com as impressões que os outros terão de nós. Não deixar de lado o autocuidado genuíno. Não criticar as amigas sem que elas peçam opinião (essa é difícil). Não fugir dos diálogos necessários para esclarecer ressentimentos e crises. Não deixar de fazer qualquer coisa, por medo do que vão pensar. Não atender a todes e se deixar por último. Não se esforçar para agradar demais e ficar com sentimento estranho preso dentro do peito.

Já observou esse paradoxo? Ao mesmo tempo que buscamos ser exclusivas, originais, acomodando nossas múltiplas identidades, lidamos com o medo de ter extrapolado, de ter ofendido as convenções e de ter que se encaixar, literalmente. Se colocar dentro de uma caixa onde possam dizer:  és boa, boa esposa, boa mãe, boa filha, irmã, amiga. Só que controlar todas essas demandas e expectativas não é possível e os remendos que muitas tem feito para não se mostrarem vulneráveis, tem adoecido muitas de nós. E tem um monte de mulheres incríveis falando sobre isso nos podcasts, nos livros (Mulheres que correm com os lobos, de Clarissa Pinkola Estés e A coragem de ser imperfeito, de Brené Brown, são dois exemplos).

Só para falarmos de maneira mais concreta sobre as pequenas maldades que nos aprisionam, cagam regras até sobre estar ou não com cabelos molhados ao sair de casa. “Ah, que brega, faz uma escova antes de sair”. Eu sempre sorri alto diante dessa empáfia ditadora e ultrapassada, uma clara evidência de como coisas vãs escondem, inclusive, marcas de desigualdades sociais. E a trabalhadora brasileira que tem que colocar comida na mesa, lá vai ter tempo de escovar o cabelinho para não chocar os olhos de quem a vê? Nem eu que eventualmente posso pagar uma escova.  Eu escrevo, eu amo, eu pari uma criança e cuido dela, entende o quão grande é isso e o quão pequeno é um cabelo molhado?

Depois de um dia cansativo, você chega em casa e tudo o que quer é tomar um banho relaxante e poder ser você mesma. Isso é o mínimo, vou nem falar da necessidade de não deixar a calcinha marcando, esconder os mamilos, levantar os seios, depilar-se toda, retocar a raiz, colorir pelos, fazer unhas e etc. Faça uma ou a outra coisa por você, quando puder e der, mas não se afaste da construção do seu intelecto, sua espiritualidade e das relações verdadeiras para atender o porre das convenções sociais imposta a mulher. Não! Porres, por vezes, são divertidos. É a ressaca, essa sim é insuportável.

Saia de casa do jeito que você quiser, namore quantos caras forem necessários até você encontrar alguém que te trate com respeito, não case por casar, observe-se nos seus dias de sentimentos ruins e se poupe. Eu sigo aqui, firme no propósito de não gastar energia para além dos meus limites físicos e psicológicos, buscando olhar a outra como cúmplice e não como rival, na esperança de que mais e mais mulheres deixem acender a chama crítica, de modo a combater, mesmo que silenciosamente, questões que invadem a nossa subjetividade, nossa intimidade, autoestima e saúde emocional.

 

 

 

Vanessa Brandão

Vanessa Brandão é jornalista amazônida. Manauara de nascimento, criada em Roraima, é indígena descendente do povo Wapichana. Doutoranda em Estudos Literários pela Unesp – SP, mestra em Letras pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), pesquisando sobre arte e literatura indígena. Tem especialização em Assessoria de Imprensa e Novas Tecnologias da Comunicação e em Artes Visuais, Cultura e Criação. Publicou seu primeiro livro em 2022, com o título ‘Entre Pinheiros e Caimbés’. Escreve poesias, crônicas e contos e trabalha na produção de um romance. Atualmente mora parte do tempo em Lódz, na Polônia e parte em Boa Vista, Roraima, no Brasil

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