CotidianoCrônicas

Crônica de uma tarde quente

Foto: Carta Maior

Entrei no carro. Apenas 30 minutos no sol da tarde é o suficiente pra queimar a bunda. Sentei meio de lado até o banco ficar pelo menos morno. Roraima é sempre assim. Nem quero música. Estou perplexa e pensando em escrever aleatoriedades. É o que faço agora. Finjo não ter nada mais importante pra fazer, mas tenho: um artigo para terminar, o primeiro capítulo da dissertação para escrever e ainda me preparar para a qualificação que será em fevereiro. Antes do meu aniversário, antes de partir.

Tenho alguns pontos de angustia no coração. Minha cadela, Dora, já velha, com seus oito anos de caminhar manso e elegante, não tem com quem ficar. Diante disso é inevitável não pensar em nem ir. Dora não pode ser de qualquer um, é doce e educada, tem sentimentos refinados que nem gente. Saramago e Jimmi ganharam família nova e novos cãezinhos companheiros. Acho que estão felizes, porém, suspeito que, assim como eu, carreguem no coração um tanto de dor. Dor de saudade. São Francisco, protetor dos animais, há de me ajudar a resolver tudo isso e superar.

E agora o medo de uma guerra! Temos uma fronteira seca a perder de vista e se as coisas ficarem piores do que já estão e mais e mais famílias se desesperarem e resolverem vir para Roraima? Como lidar com tantos olhinhos castanhos sem entender o porquê de estarem parados num calor abominável, nas esquinas, praças e semáforos da cidade? Não estarei aqui, mas elas estarão, minha mãe e irmãos aqui ficarão.

Às vezes eu romantizo as coisas e me filmo de cima. É um filme de exílio. Não que eu tenha feito algo realmente notável para ser exilada, antes fosse, mas a falta de perspectiva e a morte da esperança por dias melhores, a curto prazo, nos empurraram para longe, para o sonho de aprender um pouco mais e saber como ajudar efetivamente meu lugar. E se eu não sentir saudades? E se eu voltar logo e não me devolverem meus cães? É um direito de quem ficou, visto que são apaixonantes mesmo, eu sei. E meu pé de canela? Demorou 10 anos para crescer e agora foi cortado por engano. Que triste. Não mais triste que as crianças pedintes dos sinais. Não mais triste do que a Dora, doce, meio idosa e sem lar, ainda. É. Vamos lá… resolvendo as dores possíveis de solucionar. Essa vida parece ser isso.

Vanessa Brandão

Vanessa Brandão é jornalista amazônida. Manauara de nascimento, criada em Roraima, é indígena descendente do povo Wapichana. Doutoranda em Estudos Literários pela Unesp – SP, mestra em Letras pela Universidade Federal de Roraima (UFRR), pesquisando sobre arte e literatura indígena. Tem especialização em Assessoria de Imprensa e Novas Tecnologias da Comunicação e em Artes Visuais, Cultura e Criação. Publicou seu primeiro livro em 2022, com o título ‘Entre Pinheiros e Caimbés’. Escreve poesias, crônicas e contos e trabalha na produção de um romance. Atualmente mora parte do tempo em Lódz, na Polônia e parte em Boa Vista, Roraima, no Brasil

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