Crônicas​

FOTO DE BUMBUM E SUAS PEQUENAS PAIXÕES IMPORTAM

Lódz, Polônia

9 de fevereiro de 2020. Fim do inverno

Eu curto quem posta foto mostrando o bumbum na rede social em plena quarta-feira, no horário comercial. É um ato de transgressão, um rasgo no chato conservadorismo, um grito de liberdade. Gosto inclusive quando o bumbum é fora de forma, com celulites e estrias. Gosto de bumbum dentro das grades do padrão publicitário, pela beleza pura e simples, mas gosto mais daquele que andava escondido por estar justamente fora dos padrões inoportunos. Esses corpos que se libertam e que se curtem do jeito que são, passam a ser uma homenagem ao que é comum e normal. Acostumam nossos olhos a outro tipo de beleza.

A mulher que postou a foto, por um momento não se importou com o homem tarado que iria se masturbar vendo a imagem dela (a gente passa a vida toda com medo de psicopatas tarados), não se importou com as amigas do trabalho que poderiam rir e debochar, nem com o print que poderiam tirar para falar mal ou bem. Ela simplesmente se achou bonita e quis compartilhar, quis dizer que está com a autoestima lá no céu e é muito feliz assim. E te planta a pergunta: por que você também não está feliz do jeito que você é? Quem disse que não pode?

Gosto das garotas doidas que vivem seus prazeres secretos, e das mães que insistem em doar seu tempo para um pequeno passatempo, mesmo com a casa caindo, com as roupas entulhadas, com o filho enchendo o saco. Gosto porque nos faz bem e, consequentemente, faz bem ao mundo. Gosto ainda porque nós, mulheres, passamos a vida confundindo o nós, nosso eu, nossos impulsos e ideias criativas que vem junto e colorindo a alma, com o que é determinado pelos outros, as regras morais e sociais, o machismo embutido em todas as limitações, todos os “mas você é mulher”.

O normal é doar-se para atender o próximo. A mãe, os irmãos, os filhos, as amigas, o trabalho, a casa, o marido e as nossas pequenas e grandes coisas são sempre minimizadas, colocadas em um cantinho para quando sobrar tempo, e esse tempo dificilmente sobra, mesmo para aquelas que trabalham apenas em casa, afinal, trabalho de casa nunca acaba e é a melhor maneira de paralisar uma mulher (tentando lembrar quem disse essa frase).

A mulher sarada, que não fica um dia sem ir à academia, que se organiza para comer direitinho, mata todo dia alguns leões para poder priorizar-se e, com certeza, já foi chamada de egoísta e foi malhar puta da vida por isso. A que não tem esse foco, pois não aguenta conciliar filhos, casa, marido e ainda uma atividade física, também é cobrada, chamada muito provavelmente de desleixada e outros adjetivos nada corteses.

Qualquer lazer, qualquer hobbie feminino, tudo que queiramos priorizar além daquilo que a sociedade “manda” é taxado de frívolo, perda de tempo, vira piada. Eles dizem “coisa de mulherzinha”. Observe quanto de pejorativo tem nisso. Muitas cansam, deixam de lado as pequenas paixões, seguem o bonde da vida conforme manda o figurino social e lá na frente adoecem, não sabendo o porquê. Adoecemos de vida sufocada, de tanto não ser o que queremos, de tanto cortar nossa intuição que tanto clama por nos guiar, não querendo deixar que sejamos só o que esperam de nós.

Essa questão está muito presente nas redes sociais da atualidade, mas muitas garotas, mulheres e senhoras ainda não se ligaram, se recusam a virar a chave e ver, se ver. Por esse motivo, eu desejo profundamente que cada mulher, tenha ela uma vagina ou não, se organize direitinho, ou se desorganize mesmo, talvez seja até melhor, para ver seus filmes de comédia romântica com brigadeiro, para pintar florezinhas em papel de carta, fazer chaveirinho para dar de presente, colecionar fotos de makes e tatuagens na pasta do Pinterest, ler seus livros de pornô romântico, plantar plantinhas, fazer ioga, meditar, nadar nua em um igarapé, produzir uma fantasia de carnaval, republicar posts engajados, lutar por uma causa, editar fotos e postar com frases impactantes (só coloca o nome do autor da frase, please), dançar zumba, dançar na sala, no quarto, aprender quadradinho de oito ou de 12, sei lá, cantar, colecionar cristais ou torcer por uma miss na TV. Faça por você o que você gosta, e deixa o mundo esperar um pouco e não acredite nunca mais que suas coisas são frívolas.

Há tempos eu postei um pequeno texto no Facebook sobre minha insatisfação com o preço da energia elétrica (quando eu ainda morava no Brasil), com o preço de tudo e com a impossibilidade de poder planejar uma viagem em família como eu gostaria naquele momento. Um amigo jornalista de longa data debochou, ironizando o meu problema “classe média”, enquanto tinha saído naquela semana uma matéria falando sobre o aumento no número de famílias em situação de extrema pobreza no país. 

A crítica não só foi injusta, pois sou uma pessoa sensível às causas sociais e busco fazer minha parte nesse contexto de desigualdade em que vivemos, como foi machista, visto que na semana seguinte o mesmo colega jornalista estava lá falando de futebol como se fosse o debate sobre a polarização política no mundo. Entende que a sociedade patriarcal sempre nos manipulou? A crítica sempre vai chegar, mesmo que tenhamos a melhor das intenções, mesmo que não estejamos fazendo mal a ninguém. Parece ser irresistível dizer a uma mulher o que ela tem de fazer e pensar, e nós, mulheres, também reproduzimos esse comportamento. Por isso, eu respeito tanto os nudes na internet, as que viajam sozinhas, as que fazem trabalhos manuais, as que são engajadas e militam em qualquer área. Sigamos, garotas, quebrando convenções desnecessárias à nossa liberdade e ao florescimento dos nossos talentos silenciados. 

Reencontro ancestral da vida para a academia

É preciso dizer primeiramente que escrevo de entrelugares de apagamento e subalternização. Da periferia da periferia e isso precisa ser lembrado, não para suscitar consternação, mas para explicar uma possível atitude defensiva desenvolvida ao longo da vida principalmente ao lidar com indivíduos fora de nosso território de origem. Sou amazônida, uma definição de múltiplas faces, a qual apreendo principalmente como alguém que nasceu na Amazônia legal, e se identifica/valoriza as culturas e biomas naturais da Amazônia brasileira. Meu lugar de fala é o de quem viveu com identidade emprestada e influenciada pela globalização, pelo braço colonizador euroamericano, sem nunca ter deixado de viver na prática, ou seja, nos sabores, nos pés na terra, no corpo que busca por água e ama árvores, a vida amazônica.    

Meu pai nasceu na ilha Tupinambarana, pseudónimo de Parintins, a ilha do Boi Bumbá Garantido e Caprichoso, lugar banhado pelo rio Amazonas, onde acontece o grandioso festival folclórico de Parintins, que é patrimônio cultural do Brasil, segundo o Iphan. Seu Tenilson Brandão meu saudoso pai, que veio a falecer aos 60 anos, migrou para Roraima ainda jovem e conheceu dona Luiza, minha mãe, com quem teve quatro filhos. Ela, roraimense, filha da terra, vinda de uma longa mistura de nordestinos com indígenas. Neta de uma Wapichana. Essa relação de origem entre Amazonas e Roraima, negros e indígenas é meu entrelugar de existência e resistência.

Por um acaso da vida, eu nasci no Amazonas, em Manaus, numa tentativa do meu pai de retornar ao seu estado de origem, mas com 40 dias de vida voltamos todos novamente para Roraima, terra na qual cresci. Retornei à Manaus aos 20 anos para fazer faculdade de Comunicação Social/Jornalismo. Tão logo peguei em mãos meu diploma, retornei à terra de Makunaima, meu Roraima. Emendei logo duas pós-graduações ao mesmo tempo. Trabalhei em Rádio, TV, jornal impresso, assessoria de comunicação, cerimonial e depois de inúmeras experiências vividas, iniciei a jornada de um mestrado em Letras, na Universidade Federal de Roraima, pesquisando sobre o saudoso artista Macuxi Jaider Esbell. Foi através do primeiro livro escrito por ele, intitulado Terreiro de Makunaima, que reencontrei minha identidade ancestral indígena, ou minhas identidades ancestrais, por isso o entrelugar mencionado no início desse texto.

Tenho um avô negro, um avô caboclo, bisavó nordestina do Rio Grande do Norte, bisavós indígenas do Norte, de etnias distintas. Essa mistura se homogeneíza ao longo dos anos e sem registros históricos sobre os povos que nos compõem, geralmente não pensamos para além de nossas raízes imediatas. Mas como nos diz Santo Agostinho, algo permanece em nossos palácios da memória, ventre da alma, ao longo de nossas existências e nos leva instintivamente a buscar, admirar, ver e se identificar com o que nos compõe, mesma que pareça inédita aquela primeira experiência visual e auditiva, que geralmente surge a partir da arte, essa porta aberta para nossas reminiscências.       

Mas vamos abrir espaço para uma contextualização maior: a subalternização da cultura indígena em Roraima, que ironicamente é o estado com maior população indígena do Brasil, me impediu de ter traçada uma linha de ancestralidade mais clara, possibilitando o reencontro com o passado de forma mais certeira. Só me restou uma única foto da carteira de identidade de minha bisavó Cecília, uma wapixana nascida onde hoje se localiza o município do Amajari, retirada da comunidade e inserida como trabalhadora em uma das fazendas no extremo-norte, a qual nunca saberei o nome. Restou-me na cor da pele, nos traços fenotípicos, a tez afro-indígena. Simplificando: minha cara de índia, morena, caboca, parda, imensa mistura.   

Face esta, que, desde a adolescência, em qualquer viagem para o eixo sul ou sudeste do Brasil me possibilitava experiências boas e ruins, nas quais eu era apontada como “índia”. Em Roraima, no entanto, essa identificação ficava perdida, escondida, talvez por um silencioso preconceito disfarçado em gestos e palavras em tom de brincadeira, mas que encobriam nada mais que o apagamento.

Os indígenas que saem das comunidades em busca de uma vida na cidade são chamados pelo não-indígena de ‘caboco’ ou ‘caboca’. Historicamente explorados, ocupando posições de subempregos, tendo sua cultura e modo de vida menosprezados, os cabocos e cabocas roraimenses se distanciavam cada vez mais da identidade indígena. Afirmar-se indígena ainda não é possível para muitos, por alienação, por falta de consciência de si, mesmo que ser indígena permaneça evidente na cor da pele, no fenótipo, na intuição.

Mas na contracorrente dos que migraram para as cidades, o Movimento Indígena em Roraima se organizou desde os anos de 1970, por meio da criação do Conselho Indígena de Roraima, instituição base para o surgimento de muitas outras, que representam etnias distintas, comunidades distintas, numa grande teia muito bem estruturada. O movimento indígena organizado contribuiu enormemente para que a identidade de tantas etnias não se perdesse, para que as 32 terras indígenas em Roraima fossem demarcadas e a partir delas, nelas, as comunidades fossem preservadas, o modo de vida indígena apesar de afetado pelo colonizador desde a chegada dos primeiros estrangeiros, espanhóis, holandeses e portugueses e com todo aparato opressor, entre religião e uso da força, apesar deles, a cultura desses povos resistiu e seguiu se fortalecendo diariamente, mantendo sua identidade/cultura preservada. Alguns desses indígenas saem de suas comunidades para buscar outro tipo de conhecimento, se embrenham no mundo dos brancos e voltam ainda mais potentes.

Meu reencontro com a identidade indígena nasceu a partir da arte, especificamente a partir da literatura escrita por um desses indígenas que vivenciou o mundo dos brancos para logo em seguida poder potencializar sua manifestação indígena ancestral. Como já disse, Jaider Esbell iniciou sua carreira a partir da publicação do livro Terreiro de Makunaima (2010) . A obra chegou em minhas mãos quando era editora de cultura no jornal Folha de Boa Vista e fazia resenhas literárias numa coluna de variedades assinada por mim. A leitura daquelas páginas me fez recordar do meu ser indígena de outras existências, das minhas ancestrais, especialmente, das sábias anciãs que deixaram seus ensinamentos nas mãos de minhas avós, tias e de minha mãe, dos ensinamentos que resistiram a uma vida toda permeada pela colonialidade.

A dissertação do mestrado em Letras, finalizado em 2019, pela UFRR, seria então toda sobre Jaider Esbell e sua relação com Makunaima, o criador e transformador das coisas todas do circum-Roraima, região etnográfica inserida da imensa Amazônia transfronteiras, aos pés do grande Monte Roraima, casa lar de Makunaima, de quem ele dizia ser neto. Foi por meio de Jaider que Meriná me foi apresentada. Ela era sua mãe de alma, como o próprio fazia questão de frisar. Meriná era o nome indígena da anciã Macuxi Bernaldina José Pedro, mestra dos saberes ancestrais dos lavrados de Roraima. Devota de Nossa Senhora e filha de Makunaima, mesmo tendo sido em parte convertida ao cristianismo, devido à presença forte da igreja católica em terras indígenas, ela nunca abriu mão de suas manifestações de fé ancestral e cantou seus cantos de cura até a morte prematura, por Covid-19 em junho de 2020. Preservava a língua Macuxi, sua língua mãe e pouco falava em português, mas sua linguagem artística por meio dos cantos e danças indígenas era universal, dialogava diretamente com as reminiscências indígenas de quem a ouvisse e tivesse em si um elo perdido com o passado, nessa ou em outras vidas. Foi assim que me vi comovida por Mariná desde o primeiro encontro ainda na Galeria de Arte Indígena Contemporânea de Jaider Esbell, numa tarde quente na cidade de Boa Vista no ano de 2018.

Tive a oportunidade de comer uma Damurida (comida típica indígena, feita a base de peixe cozido, pimentas diversas) feita por suas mãos e ouvir suas histórias meio contadas, meio cantadas, misturando palavras em português com a língua macuxi, com direito a mímicas e muitas risadas. Com Jaider Esbell ela pôde ir a São Paulo e seguir até a Europa, onde conheceu o Papa Francisco e para ele entregou carta pedindo apoio no combate ao Garimpo ilegal em terras indígenas e a preservação da mãe natureza. Estava em grande momento de atividade artística e política quando veio a pandemia e invadiu todos os cantos do planeta, inclusive comunidades indígenas.

Mãe de seis filhos, Meriná foi sepultada na capital Boa Vista. Os familiares aguardam até o momento autorização para poder levar seus restos mortais para serem enterrados conforme as tradições Macuxi, na terra onde ela viveu, a comunidade do Maturuca, na Raposa Serra do Sol.  

De minha parte o melhor que pude fazer para tentar reunir a sapiência dessa mestra dos saberes ancestrais foi estudar sua obra, sua performance cultural e registrar sua vida em forma de tese de doutorado, tarefa na qual me encontro desde 2021, ano 2 da pandemia. O que ela tinha a dizer ao mundo? Que tipo de literatura ela fazia? Quando morre uma anciã indígena, o que morre com ela? De que modo podemos levar a conhecimento do grande público o legado dessas pessoas? Como a literatura oral indígena, a chamada ‘oralitura’ deveria estar inserida no cânone da literatura brasileira? Como a poética oral de intérpretes como Vó Bernaldina deve ser lida nos ambientes escolares? Enfim, são perguntas sobre as quais me debruço e aprendo diariamente, lançando mão dos que vieram antes de mim e já escreveram seus saberes, seja na academia ou em livros e no ambiente virtual, hoje tão plural e rico de conhecimento.

Vivo um momento de escuta, leituras e pesquisa constante para compreender arte e vida, conhecimento e toda retórica dos povos ancestrais. A Unesp, instituição paulista que me recebeu como aluna no doutorado em Estudos Literários, me brindou com uma orientadora como Elizabete Sanches Rocha, totalmente aberta as ideias decoloniais, sensível aos saberes dos povos originais. Mais uma mulher que parece ter sido colocada nessa peça chamada vida, para abrir caminhos e ajudar na geração dos frutos de uma existência cultural mais plural e menos excludente para o país. Mais que isso, do meu entrelugar de raças, sinto-me cada dia mais presenteada e pertencente, pronta para seguir defendendo por meio da pesquisa científica, a enorme contribuição da ancestralidade indígena para o futuro do planeta.

Outros caminhos além do casamento

Esse ano de 2020 deu a todos algo importante para o crescimento espiritual: medo. O medo, tão recriminado nas frases feitas em contextos diversos nos leva a refletir e mudar de rumo em âmbitos diferentes da vida, tal qual árvore em busca do sol. Se você não teve medo de perder alguém que ama, vá buscar ajuda psiquiátrica. E esse medo de perder me guiou no sentido de buscar leituras que eu não tinha sobre caminhos possíveis a seguir, legados intelectuais deixados para a humanidade, teorias sobre formas de ver o mundo, a sociedade e sobre o modo como eu me vejo. Mas uma crônica é pouco para falar de tudo. Abordarei nesse segundo texto, de uma série de quatro, sobre o tema Mulheridades, a minha percepção sobre o modo como o mundo nos induz a acreditar que só existe o caminho do casamento para a felicidade.

Explico: as novelas brasileiras, na minha época, talvez tenham sido o primeiro contato externo com o amor romântico, casamento e família de comercial de margarina. Entre uma brincadeira e outra, vi meus pais vendo novelas e vi também muitas sessões da tarde. Hollywood, em suas produções, tal qual as novelas brasileiras, capricha nos contos de fada, nos casais perfeitos e tremendamente apaixonados. As histórias infantis sempre seguiram a mesma linha, nos enfiando goela abaixo princesas sempre em busca de príncipes salvadores. A música não fugiu do roteiro: encontrar o grande amor, casar-se e ter filhos sempre me pareceu o caminho natural de toda mulher.

Para minha sorte tive um pai e uma mãe que sempre destacaram o conhecimento como obrigatório para ‘ser alguém na vida’ e venho de uma família que, apesar de seguir o mesmo modelo patriarcal, é provida de mulheres fortes e independentes. Mais ainda: mulheres que nunca estiveram dispostas aceitar um homem qualquer só para ter alguém do lado e sentir-se realizada. Tenho tias, primas e uma irmã que seguiram o caminho da completude feminina por si só e assim levam a vida, sem depender de ser um casal para sentir-se bem ou ‘normal’. Educar meninas com a consciência de que a vida não gira em torno de encontrar o homem ideal para ser marido e pai dos seus filhos é essencial para uma sociedade mais equilibrada, justa e menos angustiada.

Não existem garantias de que uma mulher casada encontrará mais fontes de realização do que uma solteira. Hoje, casada há nove anos, acho impossível tecer qualquer tipo de métrica do que é mais fácil ou difícil (qualquer vida que venhamos a levar neste planeta é sempre muito difícil), mas é preciso não doutrinar nossas garotas a enxergar um único caminho, é preciso fazê-las acreditar que a opção de nunca se casar, nunca ter filhos é perfeitamente plausível e em consonância com a possibilidade de realização pessoal e vida plena.

O amor é algo lindo de se viver e existem inúmeras possibilidades de vivenciá-lo. Pode ser um grande desperdício de vida devotar sua existência na busca do homem dos sonhos. Até porque são cada vez mais raros. Homens bons, que conseguem ver além dos corpos, que se propõem a construir uma vida digna ao lado de uma mulher, definitivamente não são maioria na sociedade brasileira contemporânea.

Por isso se faz necessário apontar e validar outros caminhos, quebrando imposições sociais antiquadas. “Ficar para titia” sempre nos atormentou desde os primeiros anos de adolescência. Lições sobre como se portar para atrair e ‘segurar’ um homem sempre foram pautas nas revistas femininas desde minha mais tenra memória. O que nos induz a achar que este é um objetivo de vida e não consequência de uma existência cheia de conquistas pessoais.

Não esqueçamos que sempre estivemos rodeadas por elas: toda mulher conhece alguma outra mulher que simplesmente não se encaixa nesse perfil de esposa, mãe e muitas vezes se força a sê-lo, cansada de lidar com uma sociedade machista, na qual se ouve de ambos os sexos o quão importante é encontrar alguém.

É muito bom casar, ter filho, hoje é esse meu lugar de fala e não nego o quão desejei isso. Casei apaixonada, exigindo igreja, vestido branco, festa, lua de mel, casinha, animais de estimação e ser mãe. Tudo ocorreu no seu tempo, quase uma receita de bolo e talvez por isso eu tenha hoje a liberdade para dizer que esse é apenas um dos caminhos para a felicidade, não o único, não o mais correto, apenas mais um caminho.

Experiências de viagens solo, horas de estudo sem pausa, mudanças bruscas de planos, liberdade para decidir sozinha e pensando só no próprio bem-estar, horas de filmes, livros e ou séries interruptas e tantas outras benesses de uma vida de solteira precisam ser retratadas pela publicidade, pelas revistas e pelas novelas do mesmo modo e com o mesmo peso que se dá ao amor romântico, pois sabemos que sobre o manto sagrado da família tradicional se esconde muita infelicidade. Desculpe, mas já não aceito sem um olhar crítico a frase “família acima de tudo”. Creio hoje na paz de espírito, no combate a todo tipo de violência doméstica, no cultivo da alegria genuína e do amor-próprio como fonte importante para a sobrevivência sadia. Precisamos inclusive parar de arrumar crush ou marido para as amigas como se isso fosse um ato de bondade e digo quase como uma nota mental, visto que sempre fui muito boa em formar casais. A não ser que elas peçam, é preciso considerar que uma mulher pode ser muito feliz sozinha e mais ainda: que ela pode estar solteira sim e sozinha de fato, nunca, e é válido levar a vida assim, é válido se a noção de família dela girar em torno dos pais, irmãos tias, avô, avó, seja lá a formatação ideal ou não, construir uma família não necessariamente quer dizer casar-se.

E antes que pensem que estou separada (como ocorreu com tantos amigos nesse ano pandêmico) ou infeliz no casamento, adianto que não estou. Apenas compreendi os meandros que nos amarram e conduzem. Compreendi que existem muitas outras formas de estar bem com a vida e hoje manter-me casada tornou-se uma escolha consciente, uma opção feliz e não um fardo ou uma obrigação.  Se o medo de perder alguém que amamos sempre estará presente em nossas vidas e precisamos aprender a lidar com ele (e essa pandemia fortaleceu essa ideia) se faz necessário amenizar o medo de não seguir caminhos previsíveis e impostos de modo autoritário, mesmo que essa autoridade haja nas entrelinhas de nossa vivência cotidiana. Precisamos trazer esse tema para nossas conversas e abraçar outros modos, outros olhares sobre a existência feminina. É a maneira mais generosa de educar garotas brilhantes e mantê-las longe de relações desiguais, dolorosas ou violentas.  

Dramáticos: eu e o salgueiro chorão

 

Estive olhando fixamente para as folhas das árvores em busca de captar o momento exato da troca de estação, que oficialmente começa em 22 de setembro para os humanos. Algumas árvores, no entanto, já receberam o aviso divino para a desconexão. Me custa acreditar que cada uma das trilhões de folhas verdes terá seu sustento encerrado, ficará fraca, passando de verde para o tom amarelado, laranja e num momento silencioso qualquer, incentivada por um vento amigo, se soltará do seu talo já desnutrido e repousará lentamente no chão.

Como ferida na pele, um ponto amarelo amarronzado domina as folhas de algumas espécies, mas o verde ainda impera no chão de grama e na maioria das árvores. O outono é iminente e empresta uma metáfora para a vida. Metáfora um tanto gasta e já muito comentada na literatura mundial, mas tão forte e evidente que não consigo deixar de refletir sobre ela e vivencia-la. É sobre a passagem, a mudança, o transformar das coisas em questão de meses, dias, horas. A todo momento tudo pode “não ser mais” ou “vir a ser”. Nós somos amorosos e resilientes numa tarde para sermos irrequietos e afoitos na tarde seguinte, estando sob o mesmo teto, o mesmo cotidiano, as mesmas diretrizes de vida. Mesmo assim, ela vem, a mudança vem como febre, muda e ativa, guiada talvez pelos mistérios do nosso subconsciente, desejos recônditos, moradores da memória eterna da alma. Somos outra de um momento para outro, depois de algumas sinapses a mais ou a menos e ao ver a mudança de estação me surpreendo com a força absurda que tem o que é vivo. Ao ver a natureza operar sua força diante dos meus olhos, sabendo que em poucos meses tudo passará de verde à laranja, depois ao branco da neve me fazendo sentir em minha pele o sopro frio e impiedoso de outro vento a me empurrar para dentro de casa, me fazendo depender de outras camadas de roupa, tecidos, plásticos para existir nele, apesar dele, eu percebo minha pequenez humana e minhas verdades todas sendo relativizadas. Por um instante sou parte de um todo, organismo vivo e com propósitos muito além de minhas ilusões de controle. Parei o patinete diante do salgueiro chorão, árvore de rara beleza, muito comum nos parques de Lódz, ligadas ao feminino, consideradas sagradas pelos Celtas, associadas historicamente às bruxas.  As folhas pendem para o chão, finas em seus galhos a balançar fazendo a dança do vento. Algumas já se soltavam dos talos, rodopiando serenas e apesar de todo ceticismo que tenho enfrentado nesses tempos, após leituras reveladoras que me fazem olhar desconfiada para todas as religiões, eu senti claramente um dialogo aberto com aquela velha senhora árvores bruxa, a despeito de minha racionalidade acadêmica já apitando para que eu saísse do lugar e voltasse ao plano das coisas ditas reais. Fiquei ali parada, olhando as folhas, imaginando-as conscientes do fim de mais uma estação, esperando a morte, o desintegrar-se na terra para alimentar a mesma árvore, tão logo a força arrasadora do inverno vá embora e a primavera chegue, empurrando brotos verdes em galhos secos, transformando novamente a velha árvore mãe numa bela senhora a ostentar vasta cabeleira verde. Somos meio folha também e é preciso deixar vir cada nova estação, sem apegos, só transformação.

O Brasil de Brasileiras como Rebeca

 

Ter senso crítico e consciência social não deve ser confundido com a incapacidade de se alegrar e de ser otimista. Refutar o otimismo, a alegria de viver, a esperança é dar espaço para ações e sentimentos paralisantes, prato cheio para o negacionismo, a ignorância e a falta de sensibilidade empática. Tem gente lutando contra qualquer responsabilidade na busca de diálogo. “Dialogar é o caralho, não sou pago para ensinar o básico de humanidade para gente ignorante por opção. Eu bloqueio e excluo da minha vida mesmo”. Ouvi de um amigo e fiquei refletindo sobre esse posicionamento e sobre minha paciência em explicar realmente o básico para os que usam do pior do senso comum para defender o indefensável, os que se baseiam em mentiras, informações claramente manipuladas para formar opinião.

            Eu compreendo quem perdeu a paciência e a parcimônia. Os dias e seus fatos trágicos em várias esferas do Brasil, da pandemia à fome, dos latrocínios à desigualdade entre classes (que só tem se acentuado) provocam enorme desgaste emocional e uma quase inevitável radicalização e é exatamente ela que nos paralisa. O problema é que na radicalização a narrativa de eleger alguém ‘fora do sistema’ pareceu a melhor opção e foi a pior coisa que poderia acontecer num país que precisava enfrentar o desafio de uma pandemia. Ficamos todos, brasileiros, mesmo os que nem no país estão morando, como é meu caso, ficamos todos a mercê de um incendiário, alguém pouco inteligente, nada sensível, nada empático, dono de orgulho e arrogância notáveis.

            E por que estou falando de política em plena Olimpíada?  É que fui tomada por uma energia otimista quase incontrolável depois da linda vitória da Rebeca Andrade, essa anja negra tão doce e forte que iluminou nossa manhã aqui na Polônia. Chorei emocionada. Luigi estranhou meu choro de alegria, nossa concentração em frente a TV, ficou até com ciúmes da atleta. O esporte também é político. Ver uma menina pobre e simples vencer, ela que é filha de mãe solo, nascida no subúrbio desse enorme país me faz ter esperança e vontade de dialogar, apesar de tudo. Apesar da cegueira coletiva de parte da população, precisamos explicar as coisas a partir da realidade dura da maioria dos brasileiros. As coisas não vão bem, a fome, esse mal tão basilar de sociedades pouco avançadas, a fome essa inimiga que já não deveria existir diante de um mundo tecnológico em pleno século XXI , é cruel e quem não a enfrenta como prioridade, não serve para o Brasil real.

            O Brasil de brasileiras como Rebeca da Ginástica, Rayssa do Skate, do Herbert do boxe, gente simples e brilhante, talentosa, só precisando de uma chance, um investimento, um olhar de cuidado e incentivo, esse Brasil precisa da nossa paciência para o diálogo até encontrarmos um ponto comum, um nome possível e razoável, que tenha a capacidade de gerir com estabilidade e busque curar tantas feridas abertas em tantos âmbitos, da arte à saúde, do meio ambiente à educação. Respeito muito minhas lágrimas, mas amo minha risada, já dizia Caetano Veloso, por isso escrevo cheia de esperança, deixando a alegria dourada da medalha de Rebeca me alegrar nesse domingo, 1º de agosto de 2021, ano 2 da pandemia.

Rolar para cima